Ser pessoa é ser amado e acreditar no amor; a doença do amor é o narcisismo
A experiência mais importante, mais necessária para a vida e para o desenvolvimento saudável de uma pessoa, é sentir que é (ou que foi) amada.
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A experiência mais importante, mais necessária para a vida e para o desenvolvimento saudável de uma pessoa, é sentir que é (ou que foi) amada. Essa é a única verdadeira aprendizagem do amor; a única forma de aprender a amar é deixar que o amor nos «infere». Alguém que não é amado nunca conseguirá amar.
A Escritura garante-nos que a nossa própria existência é uma manifestação de um amor que precede qualquer amor nosso. «É nisto que está o amor: não fomos nós que amámos a Deus, mas foi Ele mesmo que nos amou e enviou o seu Filho como vítima de expiação pelos nossos pecados»; «Assim como o Pai me tem amor, assim Eu vos amo a vós. Permanecei no meu amor»; «Não fostes vós que me escolhestes; fui Eu que vos escolhi a vós e vos destinei a ir e a dar fruto, e fruto que permaneça; e assim, tudo o que pedirdes ao Pai em meu nome, Ele vo-lo concederá. É isto o que vos mando: que vos ameis uns aos outros». Ser, declara a Escritura, significa ser amado por Deus; acreditar, significa «acreditar no amor». No entanto, quando constantemente se nega a alguém qualquer amor humano (a começar pelo amor dos pais), é muito difícil que essa pessoa acredite no amor de Deus.
A principal causa de muita dor e frustração, mas também de graves deformações do carácter de alguém, costuma ser o sentimento (nunca reconhecido) de que «ninguém me ama», ou de que ninguém ama essa pessoa como ela gostaria de ser amada, ou da forma como ela (por vezes sem dar por isso) esperava ser amada. Tais fenómenos têm vindo a aumentar, nesta época em que o amor se tem vindo a tornar mais raro no nosso mundo, e em que aquilo que é muitas vezes apresentado e descrito como amor não é verdadeiro amor. O lugar que o amor deveria ocupar foi arrebatado por vários tipos de prazeres (desde o sexo às drogas) e mais ainda pelo amor a si próprio - o narcisismo que, com a difusão do individualismo moderno e pós-moderno, se transformou, não num simples problema de indivíduos, mas numa das características mais típicas da nossa cultura.
O consumo requer publicidade, e a publicidade requer narcisismo: um narcisista sucumbe mais facilmente à manipulação insinuante, lisonjeira e sedutora. Um narcisista pode ser apanhado facilmente pela adulação, como uma abelha pelo mel, ou como um alcoólico por uma garrafa de uísque aberta. Os narcisistas carecem do necessário espírito autocrítico, do autocontrolo desapaixonado ou da sensibilidade ao "feedback" crítico, que o nosso ambiente circundante nos transmite a cada momento. A sua perceção é abafada e distorcida pela sua auto imagem ilusória. Falta-lhes a força de carácter conferida pela humildade e pela disciplina; estas já se afogaram no lago, em cuja superfície se admiram a si próprios. Os narcisistas são superficiais e vazios por dentro: esperam tudo de fora, da avaliação e da admiração dos outros. O amor-próprio é a forma pela qual se compensam da sua tristeza não reconhecida por não serem realmente amados nem serem capazes de amar. Além disso, temem o amor, sentindo que este lhes exigiria muito, preferindo exigir admiração a exigir amor.
Os narcisistas desgastam-se naturalmente com a sua vã atividade centrada em si próprios e as suas batalhas para granjear mostras de apreço que apenas os satisfazem por um breve espaço de tempo, e vão-se tornando cada vez mais fracos. Os fracos - e só os fracos - recorrem muitas vezes à crueldade e à violência, por vezes apenas na sua imaginação, mas outras vezes ma realidade. Os narcisistas podem ser cruéis e vingativos, em particular para com aqueles que, de certo modo, lesaram, prejudicaram ou puseram em dúvida a sua autoimagem. A sua perceção e memória apagam, suprimem e ignoram zelosamente tudo o que possa ameaçar a sua exagerada autoavaliação; contudo, se essa autoimagem já foi prejudicada, os narcisistas têm memória de elefante: nunca estão dispostos a esquecer nem a perdoar. No seu subconsciente e nas suas fantasias congeminam planos de vingança e, se as condições se proporcionarem, levam-nos por diante. Quando os narcisistas não vivem sozinhos (algo que raramente conseguem fazer porque não se suportam nem são capazes de se aguentar por si sós), os seus sentimentos de vingança assumem muitas vezes o carácter de terror mental em relação aos seus íntimos. Compreensivelmente, são estes em particular que não estão dispostos a desempenhar o papel de figurantes nas suas peças de teatro, e que viram um espelho para os narcisistas, por vezes até de forma inconsciente. Os narcisistas têm terror dos espelhos. Só querem «espelhos mágicos», como o da rainha má da história da Branca de Neve, que apenas responderão às suas perguntas asseverando-lhes que eles são magníficos. Se o espelho mágico se avariar e se transformar num espelho real, veem-no como o rosto da Medusa: a verdade já não os liberta, paralisa-os, transformando-os em pedra.
Estou convencido de que o fenómeno cada vez mais frequente dos «atiradores enlouquecidos» que, de repente, do nada, começam a matar pessoas à sua volta, sem terem sido provocados, não é um simples produto de «jogos conflituosos» "online" ou de filmes de ação de terror nos meios de comunicação; esses perigosos produtos costumam acelerar apenas mecanismos de desencadeamento. Ao que parece; trata-se, muitas vezes, da trágica expressão da ira de um indivíduo, da ira de alguém, cuja imagem narcisista de si próprio e do mundo foi feita em estilhaços pela realidade. A seus olhos, uma sociedade que não consegue funcionar segundo os seus conceitos apenas merece ser destruída. O brilho ideológico (referência a símbolos religiosos ou políticos costuma ser apenas «valor acrescentado», uma simples droga de que o perpetrador precisa para se inebriar e dessensibilizar, tentando arranjar coragem para o seu ato.
No passado, o colapso de um mundo narcisista conduziria, muito provavelmente, ao suicídio (quem sabe se o afogamento de Narciso, na lenda mítica, não terá sido, na realidade, uma alusão indireta ao suicídio). Atualmente, o suicídio parece ser acompanhado ou até substituído pelo homicídio de outras pessoas ... e quantas mais, melhor. O paraíso dos mártires, o estatuto de culto numa seita religiosa ou política e a cobertura dos meios de comunicação são várias formas pelas quais os emuladores amais de Heróstrato tentam «sobreviver às suas mortes» e alcançar a fama transcendendo a morte: uma caricatura da eternidade. São muitas vezes impelidos pela projeção de um desejo muito semelhante às tentativas loucas dos megalómanos narcisistas mais patológicos da história, desde Nero a Hitler, para garantir que o espetacular cenário do seu suicídio será uma megalópole em chamas, exibindo pilhas de cadáveres. A ideia de inferno não os dissuadirá do seu ato: afinal, o inferno tornou-se um dos estimulantes preferidos da cultura do entretenimento de massas (basta recordar os nomes de muitas bandas de "rock" e de "heavy-metal").Apesar disso, as formas mais extremas de amor-próprio imoderado já trazem em si o germe do inferno: o amor-próprio desse tipo acaba por se transformar em ódio a si próprio e em autodestruição. (...)
As pessoas que sofrem de falta de amor ou do sentimento de que ninguém as ama ouvem, por vezes, os cristãos dizer-lhes: Deus ama-te! Trata-se, sem dúvida, de uma verdade teológica profunda e de uma das mais profundas experiências místicas. Apesar disso, não me surpreende que bastantes pessoas se sintam indignadas ao ver cartazes, em encontros de evangelização, que proclamam «Deus ama-te!» ou «Jesus é teu amigo!». Não são apenas aqueles que ficam de nervos em franja frente a qualquer referência à religião que têm essa reação, mas, por vezes, também aqueles que ficam muito ofendidos quando grandes verdades são transformadas em "slogans" baratos, quando «os mistérios da fé» saem precipitadamente e com demasiada facilidade dos lábios de um certo tipo de pessoas (eu sentir-me-ia tentado a dizer: que são exalados pela sua boca como mau hálito).
Impressiona-me que aqueles que já experimentaram o amor de Deus quando uma complicada relação interpessoal passou por uma fase mais difícil, uma relação em que eles têm de dar muito de si próprios, sabem mais acerca desse amor do que aqueles que transbordam de emoção durante os cantos comunitários de piedosa música "pop" religiosa. Sim, durante a liturgia ou a oração, ou quando nos sentimos extasiados frente ao esplendor das montanhas e das quedas de água, ou enquanto escutamos o "Messias" de Händel, podemos ser avassalados por um poderoso e autêntico sentimento de mistério absoluto, transbordante de amor; eu tenho tido momentos desses, contando-os entre os tesouros da minha vida. Contudo, porventura não pertencem ainda esses toques de graça ao reino do «enamoramento»: à antecâmara do amor?
Em minha opinião, amar a Deus e experimentar o seu amor significa dizer continuamente um maduro e fiel "sim" à vida - incluindo tudo o que eu sofro, e tudo o que continua a ser um mistério e uma fonte de assombro constante. Implica estar ciente das profundezas da vida mesmo naqueles momentos em que estou tão absorvido por aquilo que está a acontecer à sua superfície, que mal me apercebo das suas profundezas. Significa deixar de brincar como se fosse senhor e dono da vida, da minha própria vida e da vida dos outros - e fazê-lo com entendimento, alegria e liberdade. Amar a Deus significa sentirmo-nos profundamente gratos) pelo milagre da vida e exprimir essa gratidão ao longo da própria vida, aceitando a minha sorte mesmo quando esta não condiz com os meus planos e expectativas. Amar a Deus significa aceitar com paciência e atenção os encontros humanos como mensagem de Deus cheias de sentido - mesmo quando sou incapaz de as compreender devidamente. Amar a Deus significa confiar que até os momentos mais difíceis e obscuros me revelarão um dia o seu significado, permitindo-me dizer-lhe: «Deus estava aí? Então, vamos, mais uma vez!»
Tomáš Halík
In "Quero que tu sejas!", ed. Paulinas
Fonte: Pastoral da Cultura-Publicado em 18.05.2016