O verdadeiro problema não é, portanto, o silêncio de Deus, mas a não escuta do homem, do crente. O Senhor não se esconde para nos meter à prova, para testar se o amamos ou não: quem conhece o sofrimento, a fadiga da dúvida, não pode pensar que seja Deus a querer isso! A noite, a obscuridade da fé, o silêncio de Deus são apenas aspetos do enigma do mal: somos criaturas frágeis e capazes de pecar, e o nosso pecado começa precisamente com a não escuta de Deus... Eis porquê a provação, o sofrimento pode ser sem Deus: este é só um agravamento do mal, da provação, mas como é verdade que Deus não quer o nosso sofrimento, assim não quererá nunca agravá-lo com o seu silêncio e a sua ausência. O nosso caminho de homens e mulheres é um caminho por vezes na noite funda, por vezes na névoa, porque não sabemos ver bem, não sabemos ouvir bem. O silêncio de Deus acolhido como nossa não escuta, como nossa surdez, faz parte do nosso caminho fatigante, do mester de viver como humanos e como cristãos.
A tal propósito, na espiritualidade católica do segundo milénio foram feitas inteligentes considerações sobre algumas situações em que se pode encontrar o crente, situações de obscuridade, de não perceção da presença de Deus, de tristeza que parece perder toda a esperança de socorro. Estas situações foram arrumadas sob a categoria de "desolação espiritual", condição que quem tem uma vida espiritual antes ou depois conhece, como provação forte ou fraca, breve ou prolongada. Na desolação, quando Deus parece distante, parece calar e o sofrimento parece arrasar-nos, é preciso somente ter viva a relação com Ele, através do gemido, do grito, do pranto, por vezes mesmo com palavras que invocam a morte. Decisivo na vida do cristão é continuar a bater, a perguntar, a rezar ao Senhor, não temer colocar toda a nossa fragilidade diante dele, procurarando permanecer firmes na adesão a Ele. Jesus, mesmo quando não ouviu a voz do Pai - que aliás lhe tinha falado no Batismo e na transfiguração -, dizendo-lhe «porque me abandonaste?», não diminui a fidelidade ao Pai, mesmo quando parecia que Ele o tinha abandonado. Desta desolação espiritual falou várias vezes o papa Francisco, discípulo de Inácio de Loyola. As suas recente palavras a esse respeito, nas quais fornece um diagnóstico e uma terapia da desolação, indicando também o comportamento que os irmãos e as irmãs em Cristo devem ter para quem conhece tal prova:
Avançando nos anos e navegando no mar da vida, a todos é dado conhecer tempestades e naufrágios. Então é espontaneamente que dizemos, como fizeram os discípulos: "Senhor, porque dormes? Não te importa que eu pereça? Onde estás? Porque te calas?" (cf. Salmo 44, 24; Marcos 4, 38 e paralelos). Mas também se na linguagem de uma relação amorosa usamos estas expressões, que talvez se aproximem da blasfémia, não podemos pensar que Deus tenha a possibilidade de interromper o seu amor, de fechar para sempre uma relação, de ver o ser humano sofrer e compadecer-se disto. O amor de Deus não é merecido, e nenhum de nós pode pensar ter em si próprio um amor que Deus nega, detesta ou não vê, porque o seu amor é maior que o nosso coração e que o nosso amor (cf. 1 João 3, 20).
Agrada-me concluir estas minhas reflexões citando um famoso texto anónimo: «Sonhei que caminhava à beira-mar com o meu Senhor e revia no ecrã do céu todos os dias da minha vida passada. E por cada dia passado apareciam na areia quatro pegadas, a minha e a do Senhor. Mas em alguns trechos do caminho vi só duas pegadas, precisamente nos dias mais difíceis da minha vida. Então disse: "Senhor, eu escolhi viver contigo e tu prometeste-me que estarias sempre comigo. Porque é que me deixaste só precisamente nos momentos mais difíceis?". E Ele respondeu-me: "Filho, tu sabes que te amo e nunca te abandonei: os dias em que vês apenas duas pegadas na areia são precisamente aqueles em que te levei ao colo"».
Sim, o Senhor abre sempre para nós o caminho e precisamente nas horas mais obscuras é Ele que nos leva ao colo!
Enzo Bianchi
Prior do Mosteiro de Bose, Itália
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado em 17.11.2016
Fonte: Pastoral da Cultura ( Ilustração da autora- Nema escrava de Maria)