Na época em que alcança a santidade, o seu exemplo é necessário mais do que nunca - pela maneira como, no seu melhor, ele poderia advogar sem acusações, discordar sem desrespeito e, talvez acima de tudo, ver as diferenças como lugares de encontro, em vez de exclusão.
Numa época em que a fé era questionada como nunca o havia sido antes, Newman, um dos maiores teólogos do século XIX, aplicou o seu intelecto a uma das questões mais prementes do nosso tempo: qual deveria ser a relação da fé com uma era cética e secular? O seu envolvimento, primeiro com a teologia anglicana, e, após a sua conversão, com a teologia católica, impressionou até seus oponentes com a sua honestidade destemida, o seu rigor inigualável e a sua originalidade de pensamento.
Quaisquer que sejam as nossas crenças, e independentemente da que seja a nossa tradição, só podemos estar gratos a Newman pelos seus dons, enraizados na sua fé católica, que ele compartilhou com a sociedade em geral: a sua intensa e comovente autobiografia espiritual, e a sua profunda e sentida poesia em “O sonho de Gerontius”, que, com a música de Sir Edward Elgar - outro católico de quem todos os britânicos se podem orgulhar -, deu ao mundo musical uma de suas obras-primas corais mais duradouras.
No auge de “O sonho de Gerontius”, a alma, aproximando-se do paraíso, intui algo da visão divina:
«uma grande misteriosa harmonia:
Inunda-me, como o profundo e solene som
De muitas águas».
A harmonia requer diferença. O conceito está no cerne da teologia cristã no conceito da Trindade. No mesmo poema, Gerontius diz:
«Firmemente e verdadeiramente acredito
Deus é três, e Deus é um».
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O Mistério da Santíssima trindade é o mistério central da fé e da vida cristã. Só Deus pode-se dar a conhecer, revelando-se como Pai, Filho e Espírito Santo. Foi Jesus sobretudo quem revelou o Pai, Ele como Deus, e o Espírito Santo; isto não foi invenção da Igreja. |
Como tal, a diferença não deve ser temida. Newman não apenas provou isso na sua teologia e ilustrou-o na sua poesia, mas também o demonstrou em sua vida. Sob a sua liderança, os católicos tornaram-se parte integrante da sociedade em geral, que por si mesma se tornou ainda mais rica como comunidade de comunidades.
Newman não se envolveu apenas com a Igreja, mas com o mundo. Embora totalmente comprometido com a Igreja pela qual passou por tantas provações intelectuais e espirituais, iniciou um debate aberto entre católicos e outros cristãos, abrindo caminho para posteriores diálogos ecuménicos. Na sua elevação ao cardinalado, em 1879, adotou como moto “Cor ad cor loquitor” (o coração fala ao coração), e os seus diálogos sobre as divisões confessionais, culturais, sociais e económicas estavam enraizadas nessa amizade íntima com Deus.
A sua fé era verdadeiramente católica na medida em que abarcava todos os aspetos da vida. É nesse mesmo espírito que nós, católicos ou não, podemos, na tradição da Igreja cristã ao longo dos tempos, abraçar a perspetiva única, a sabedoria e a intuição específicas, trazidos à nossa experiência universal por esta alma individual. Podemos haurir inspiração dos seus escritos e da sua vida, mesmo quando reconhecemos que, como todas as vidas humanas, foi inevitavelmente imperfeita. O próprio Newman estava ciente dessas falhas, como o orgulho e o estar na defensiva, que não estavam à altura dos seus ideais, mas que, em última análise, o deixaram mais agradecido pela misericórdia de Deus.
A sua influência foi imensa. Como teólogo, o seu trabalho sobre o desenvolvimento da doutrina mostrou que a nossa compreensão de Deus pode crescer ao longo do tempo, e teve um impacto profundo em pensadores posteriores. Os cristãos, individualmente considerados, encontraram a sua devoção pessoal desafiada e fortalecida pela importância que ele atribuía à voz da consciência. As pessoas de todas as tradições que procuram definir e defender o cristianismo ficaram agradecidas pela maneira como ele reconciliou fé e razão. Aqueles que buscam o divino no que pode parecer um ambiente intelectual cada vez mais hostil encontram nele um poderoso aliado que defendeu a consciência individual contra um relativismo avassalador.
E talvez o mais relevante de tudo neste momento, quando testemunhamos demasiados ataques graves pelas forças da intolerância contra comunidades e indivíduos, incluindo muitos católicos, por causa de suas crenças, é o facto de ele ser uma figura que defendia as suas convicções apesar das desvantagens de pertencer a uma religião a cujos fiéis foi negada a participação plena na vida pública. Durante todo o processo de emancipação católica e da restauração da hierarquia da Igreja católica, ele foi o líder que o seu povo, a sua Igreja e os seus tempos precisavam.
A sua capacidade para estabelecer relações pessoais calorosas e amizade generosa é mostrada na sua correspondência. Existem mais de 30 volumes das suas cartas, muitas das quais, evidentemente, não são dirigidas aos colegas intelectuais e líderes proeminentes, mas a familiares, amigos e paroquianos que buscaram a sua sabedoria.
O seu exemplo deixou um legado duradouro. Como educador, o seu trabalho foi profundamente influente em Oxford, Dublin e para além desses centros, enquanto que o seu tratado “A ideia de uma universidade” permanece um texto definidor até hoje. Os seus trabalhos, muitas vezes negligenciados, em prol da educação das crianças são um testemunho do seu compromisso em garantir que pessoas de todas as origens compartilhem as oportunidades que a aprendizagem pode trazer. Como anglicano, guiou a Igreja de volta às suas raízes católicas, e, como católico, estava pronto para aprender com a tradição anglicana, como na promoção do papel dos leigos. Deu à Igreja católica uma confiança renovada ao restabelecer-se numa terra da qual fora arrancada. A comunidade católica na Grã-Bretanha tem hoje uma dívida incalculável pelo seu trabalho incansável, tal como a sociedade britânica tem motivos para agradecer a essa comunidade pela sua contribuição incomensuravelmente valiosa para a vida do nosso país.
Essa confiança foi expressada no seu amor pela paisagem inglesa e pela cultura de seu país natal, para a qual ele contribuiu tão distintamente. No Oratório que estabeleceu em Birmingham, e que agora acolhe um museu dedicado à sua memória, bem como uma ativa comunidade orante, vemos na Inglaterra a realização de uma visão que ele derivou de Roma, que descreveu como «o lugar mais maravilhoso da Terra». Ao trazer a Congregação Oratoriana da Itália para a Inglaterra, Newman procurou compartilhar o seu carisma de educação e serviço.
Amava Oxford, agraciando-a não apenas com sermões apaixonados e eruditos, mas também com a bela igreja anglicana de Littlemore, criada após uma visita formativa a Roma, onde, buscando orientações sobre o seu futuro caminho espiritual, e ponderando o seu relacionamento com a Igreja da Inglaterra e o catolicismo, escreveu seu amado hino "Lead Kindly Light" [Luz terna, suave]. Quando finalmente decidiu deixar a Igreja da Inglaterra, o seu último sermão, ao despedir-se de Littlemore, deixou a assembleia em prantos. Foi intitulado "A despedida de amigos".
À imagem da harmonia divina que Newman expressou de maneira tão eloquente, podemos ver como, no fundo, ao seguirmos com sinceridade e coragem os diferentes caminhos para os quais a consciência nos chama, todas as nossas divisões podem conduzir a uma compreensão maior.
Fonte: Pastoral da cultura
Sua Alteza Real o Príncipe de Gales
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado em 14.10.2019