Mafalda fez 50 anos mas continua uma criança
Vestido aos quadrados, bandolete entre os cabelos e os inevitáveis brincos. Nem mesmo quando cumpre os afazeres domésticos, Raquel - mãe burguesa modelo - renuncia a uma nota de elegância. Está a preparar-se para passar a ferro quando, inesperadamente, a filhota se coloca atrás de si. Não dá conta dela, até que é atingida por uma das habituais estocadas verbais: «Mamã, porque é que há gente pobre?».
Meio século e centenas de vinhetas não mudaram Mafalda. A menina morena e espevitada de Buenos Aires continua a provocar com as suas frases ingénuas e, ao mesmo tempo, embaraçantes. Porque a pequena ainda não aprendeu as regras da convivência e do politicamente - ou socialmente - correto. O mundo adulto é para ela um mistério a explorar. E para o fazer interroga, com a desmesurada liberdade dos seus seis anos, pais, professores, vizinhos. As perguntas são tão concretas que parecem absurdas. Ou talvez absurda seja a hipocrisia atrás da qual os "grandes" escondem as suas contradições. Em 2014 como em 1964.
Era o dia 29 de setembro quando na revista "Primera Plana" apareceu pela primeira vez a sua cabeleira rebelde. A desenhá-la estava a mão de Joaquín Salvador Lavado Tejón, "Quino" como nome artístico. «Sim, Mafalda é mesmo uma chata», ri o autor que, aos 82 anos, é um dos mais célebres desenhadores latinoamericanos vivos. Também - e em boa parte - graças àquela «chata».
O primeiro livro de Mafalda, publicado na Argentina em 1966, esgotou em quinze dias. Em meio século, as suas tiras - publicadas em 50 países e traduzidas em 20 línguas - venderam 50 milhões de cópias.
O dado mais surpreendente é que continuam a vender. Mafalda não envelheceu. É impressionante como as suas «perguntas inconvenientes» parecem escritas precisamente para realçar os contrassensos da nossa sociedade.
«Nunca imaginei que pudesse permanecer tão atual. Quando parei de a desenhar, em 1973, não pensava que Mafalda pudesse continuar a ter um tal sucesso. Surpreende-me o afeto que as pessoas nutrem ainda em relação a ela. As crianças, sobretudo... O que, por um lado, me alegra. Por outro, no entanto, entristece-me. Quer dizer que o mundo, as suas injustiças, as desigualdades, os conflitos - problemas, em suma, que Mafalda denunciava há meio século - permaneceram imutáveis. Na verdade, se alguma coisa mudou, foi para pior... Mas eu sou um pessimista.»
E no entanto, ao lê-la, não se diria. Mafalda tem um toque poético mesmo quando diz e mostra o que não queremos ver... Precisamente pelo seu conteúdo social, muitos consideram-na uma banda desenhada para adultos. Está de acordo?
«Sim. Como, de resto, também o Snoopy e a Pantera Cor de Rosa não são bandas desenhadas para crianças. Limitei-me a meter na boca de uma menina de seis anos conceitos simples e, por isso, subversivos.»
«A Mafalda foi criada para publicitar uma nova linha de eletrodomésticos chamada Mansfield. A agência Agnes Publicidad entregou o trabalho a Miguel Brascó, mas como ele tinha outros compromissos, passou-o a mim. Isto foi em 1963. Mas a campanha nunca se fez e as oito tiras que desenhei ficaram guardadas numa caixa. Até que no ano seguinte Julián Delgado, secretário de redação da "Primera Plana", me pediu uma pequena história. Então resgatei essas tiras, e bom, foi assim que tudo começou.»
Quino desejava que Mafalda fosse absolutamente reconhecível, e para tal escolheu a sua massa de cabelos negros e largos.
Recorda-se da primeira vez que a desenhou?
«Sim. Foi no meu apartamento, na rua Cile, 371, no coração do bairro histórico de San Telmo, em Buenos Aires. Defronte está agora uma estátua sua, com as palavras: "Aqui viveu Mafalda".»
Sinal de quanto esta personagem é importante para a Argentina... E não só. Sabe que o papa Francisco, quando era ainda cardeal, citou uma tira da Mafalda?
«Disseram-mo e isso deixou-me espantado. Em 2009, o então arcebispo de Buenos Aires repreendeu alguns dirigentes da Cáritas local por terem festejado um aniversário num restaurante de luxo. Então exortou-os a não fazerem como a Susanita, a amiga de Mafalda.»
A intervenção de Bergoglio ocorreu no canal da arquidiocese: «Num dos centros [Cáritas] fizeram uma festa para um colaborador. A festa foi preparada num dos 36 restaurantes de luxo que há em Puerto Madero, em Buenos Aires, onde a refeição mais económica custa 250 pesos; 36 restaurantes que estão a um km do tugúrio de uma Villa Miseria. Se tu entras no âmbito da solidariedade da Cáritas, os teus hábitos devem mudar. Não te podes permitir certos luxos que te concedias antes da tua conversão».
A propósito de comida... Ficou célebre o ódio de Mafalda à sopa. Partilha-o?
«Não, eu gosto. Não gostava quando a minha mãe, era eu pequeno, me obrigava a comê-la. A sopa tornou-se, na banda desenhada, a alegoria de todos os regimes militares que tivemos de sofrer na América Latina. A eliminação que fizeram de toda a liberdade, com a violência e a repressão, foi repulsiva. Como a sopa para as crianças.»
Porém, durante a última feroz ditadura na Argentina, de 1976 a 1983, a "subversiva" Mafalda não foi censurada...
«Isso diz muito de quanto os militares percebiam de arte...»
Entrevista e depoimento: Avvenire, www.todohistorietas.com.ar
Edição e tradução: Rui Jorge Martins
Publicado em 03.10.2014
Edição e tradução: Rui Jorge Martins
Publicado em 03.10.2014
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