Família e caridade
Num mundo sempre construído entre os limites inultrapassáveis de um bem que aproxima infinitamente de Deus e de um mal que afasta infinitamente de Deus – definição do próprio inferno –, a questão fundamental do ponto de vista de uma antropologia que não se centre na idolatria "onfalocêntrica" do ser humano individualmente considerado, mas nas relações possíveis entre as pessoas, é essa que pergunta pelo modo como se quer construir o bem comum. Questão também ética e política, questão também ontologicamente fundamental no que diz respeito à ontologia própria do ser humano, mas também de tudo o que tal ontologia condiciona.
Neste contexto permanente e que apenas varia na imensidade do pormenor histórico-cultural, as diferentes formas de associação humana sempre constituíram problema.
Não é, pois, de agora, a chamada «crise da família». Aliás, posto assim o enunciado, resulta este numa afirmação pueril, pois, precisamente, basta contemplar o que é a realidade concreta da família, das famílias analogicamente consideradas, para se perceber que dizer «família» é dizer «crise»: a relação familiar é, por essência e substância próprias, crítica.
Não se trata de considerar a família como coisa pré-definida segundo cultura, tempo, espaço, ideologia, humana doutrina ou outro modo insubstantivo qualquer, sempre redutor. Também não se trata de olhar para a presença física hodierna das famílias, que nunca pode captar o que sejam, pois o que são aquando do olhar que as capta, em determinado momento escolhido, logo muda e muda precisamente porque a família é algo real sempre em crise, sempre em mudança, logo, algo cuja realidade física, isto é, segundo a lógica do espaço e do tempo, está sempre a mudar.
O que é necessário, para que todas as outras formas de pensar a família possam dela captar algo de concretamente real, é perceber isso que constitui a família como tal e sem o que não há família alguma, seja qual for a forma considerada, segundo qualquer vetor hermenêutico escolhido. E, do simples ponto de vista cultural, pode ser qualquer um.
A família não é um mero agregado de pessoas em interação qualquer de qualquer forma: tal pode receber nomes vários, diversos, mesmo, mas tal, não é uma família, ainda que tal pareça exteriormente, pese embora a imite formalmente: por exemplo, um suposto matrimónio cristão, ainda que cumpra todas as formalidades externas requeridas, se não corresponder a um real ato de mútuo amor entre dois promitentes esposos, não é real, é nulo, nunca aconteceu, sobretudo em sua dimensão sacramental: é o mútuo ato de amor que realiza o sacramento posto por Deus à disposição daqueles dois seres humanos( HOMEM E MULHER). Sem a realidade do amor destes, o dom permanece como puro dom, no seio de Deus, mas nunca transita, nunca se realiza sacramentalmente. O mais é magia ou nulidade. Como a magia não existe, ficamos com a nulidade.
Serve este exemplo extremo para mostrar como uma análise empírica varia da «família», se tomar agregados como os acabados de "paradigmatizar", isto é, em que não é o amor o vínculo que existe entre as pessoas, irá trabalhar «associações de pessoas» várias, mas não trabalhará a «família».
O problema não reside, então, fundamentalmente na realidade como ela está dada fisicamente, empiricamente, mas no modo como a realidade física dos agregados humanos se constitui, independentemente dos nomes que adota para se designar: podemos pensar uma sociedade em que não haja uma única verdadeira família. Aqui, a família nem estaria em crise: simplesmente não existiria de todo.
Não se quer dizer com isto que não se deva dar toda a atenção a estes aglomerados de pessoas. Bem pelo contrário, quanto mais se afastam do que é uma família tanto mais se deve neles atentar, de modo a procurar tornar possível um meio de encontro com o seu melhor bem possível.
Este melhor bem possível é o bem comum de todas as pessoas que integram tais agregados. Todas, mas mesmo todas e todas na plenitude de seus inalienáveis direitos humanos fundamentais próprios. Ora, para tal, é necessário que as relações evoluam para atos de amor. Tal quer dizer que, no limite, quaisquer agregados humanos só podem atingir o melhor possível de si próprios se se cumprirem na forma de, precisamente, família.
É neste sentido que se pode falar, no mesmo horizonte teórico que se refere a uma possível «cidade de Deus», de uma «família humana». Em termos cristãos, não há outro desiderato possível senão este mesmo de tornar a humanidade numa universal família humana. O bem e a consequente salvação são queridos para todos. É esta a vontade incoativa de Deus criador; deve ser esta a nossa vontade e a nossa ação.
Mas, então, à luz do que ficou dito, o que é uma família?
Família é toda a comunidade em que o laço de relação que a unifica é constituído pelo ato de amor, pela caridade.
Família é a caridade em ato entre pessoas. Sempre. No limite, este ato de amor transcende o próprio tempo, podendo acompanhar toda a vida de tais pessoas tendo como horizonte a própria eternidade. Mas começa sempre no tempo e é no tempo já marca dessa eternidade, dessa caridade sem fim e sem preço que é o dom de bem, no absoluto de cada ato de amor que ponho como dádiva para um outro ser humano. É este ato que funda a família, que a cimenta, que a torna passível de ser perene.
Há família, em toda a sua plenitude, entre Maria e José, mesmo sem penetração de corpos. Mas há família em toda a sua plenitude entre José e Emanuel, mesmo sem que este seja filho carnal daquele: há uma filiação segundo a caridade, segundo um amor que se consubstancia no acolhimento daquele ser como verdadeiramente meu, meu de minha carne, não a física, mas a que é incarnação do espírito da exata forma que se maximiza no ato de uma caridade absolutamente gratuita.
José nada quis de Maria em troca de seu amor. Família não é comércio de vendilhões em sagrado templo de humana carne: é dom absolutamente gratuito de tempo e vida e esforço.
Simbolicamente, a ligação de amor paternal e filial entre José e Emanuel é dada no facto de o último ser carpinteiro como o ser que foi seu pai segundo o ato providencial de uma sustentação carnal sem a qual não teria podido haver Cristo, pois não haveria como o formar em sua real carne, carne que necessita de beber, de comer, de proteção, de autoridade amante, de aprender o suor do trabalho, imagem humana perfetível da criação divina. José: a paternal providência terrena.
E da caridade de Maria não há palavras capazes.
Assim sendo, é a partir do próprio modelo da Família de Nazaré, que não é família natural, mas sobrenatural, que podemos perceber qual é o modelo essencial e substancial de família, modelo que transcende todas as contingências históricas e culturais e que instaura o modelo familiar como ato de amor, caridade sem comércio, dom absoluto que terrenamente prolonga o ato absolutamente gratuito do ato criador de Deus. A família, como comunidade de amor, é o lugar da possibilidade de salvação dos seres humanos que a constituem e de todos os seres humanos que podem vir a constituir a almejada por Deus «família humana».
Há família onde houver dois ou mais seres humanos cuja relação seja uma mútua oblação de caridade, ato em que se entre-criam por meio do amor, participando do ato criador de Deus. O mais é, isso sim, negação do dom de Deus, logo, por definição, pecado.
Américo Pereira Universidade Católica Portuguesa
Publicado em 02.11.2014
Publicado em 02.11.2014
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