Camões: a história e cinco dúvidas
No Dia de Portugal fomos à procura de Camões - e descobrimos que, na verdade, não sabemos nada da sua vida, a não ser que escreveu os Lusíadas e recebeu uma tença do rei. O resto é especulação e lenda
A história de Luís de Camões tem mais dúvidas que respostas, numa altura em que os registos eram pouco regulares.
Getty Images
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Hoje é Dia de Portugal. É dia de recordar os grandes empreendimentos marítimos dos Descobrimentos, de enaltecer o amor de Pedro e Inês, de sublinhar a ambição de D. Afonso Henriques ou de mostrar orgulho na língua. Hoje é dia das Comunidades Portuguesas. É dia de lembrarmos os tempos do Império e de olhar para aqueles que abandonaram o país em busca da mesma sorte que os antepassados.
Mas convém lembrar que hoje se passam também 435 anos da morte de um dos maiores poetas nacionais: Luís Vaz de Camões, um nome incontornável da cultura portuguesa e uma personagem cujo trabalho tem tanto de actualidade como de misticismo. Hoje também é o seu dia. Por isso, o Observador embrenhou-se na História em busca do percurso de Camões. Trouxe sobretudo dúvidas sobre a sua vida.
A vida de Luís de Camões
Diz-se que terá nascido em Chaves. Diz-se que terá vindo ao mundo em 1524. Diz-se que a bagagem cultural de que era dotado foi absorvida em Coimbra. E diz-se – apenas se diz – muito mais sobre este poeta, porque certezas há poucas. Na verdade, não sabemos onde nasceu, se alguma vez esteve em Coimbra, se frequentou a corte, e por aí adiante. Não há documentos, não há registos, há quase não há nada, absolutamente nada. O que há são quase só restos de especulações sem outro fundamento a não ser a imaginação de quem primeiro as criou.
A história de Luís Vaz de Camões confunde-se com as memórias de um Portugal em expansão. Mas está pendurada com muitos pontos de interrogação. Ainda assim, há datas que vale a pena serem realçadas: explore a linha do tempo do que habitualmente se conta sobre a vida daquele que é considerado o maior poeta português de todos os tempos.
Cinco coisas que talvez não saiba sobre Camões
Quando Camões se dirigiu aos heróis portugueses que deixaram a terra firme da “ocidental praia lusitana” para dar “novos mundos ao mundo” entre “mares nunca antes navegados”, não tinha noção que também ele iria fazer parte daqueles “que por obras valorosas se vão da lei da morte libertando”. É que embora o trabalho de Camões tenha sido algo menosprezado em vida, hoje é o arquétipo do patriotismo português. E se há muitas histórias por descobrir no percurso camoniano, há um número igual de curiosidades por conhecer. O Observador explorou cinco.
1 — Há duas “primeiras edições” da obra Os Lusíadas
Depois das enormes aventuras que Camões protagonizou na luta contra os mouros em África e depois na Índia, o poeta português chegou a Portugal com um poema épico de mil cento e duas estrofes que narrava os feitos lusitanos por mares nunca antes navegados. Com o apoio de D. Sebastião – que recebeu o cognome de “O Encoberto” – Luís de Camões viu a obra publicada em 1572.
Nada de anormal até aqui. Pelo menos se ignorarmos a lenda que conta que Camões sofreu um naufrágio junto à costa do Camboja, a caminho de Portugal, que o obrigou a seguir a nado até à praia usando apenas uma das mãos para salvar “Os Lusíadas” com a outra.
Mas o verdadeiro mistério começa quando descobrimos que existem duas edições do poema épico no mesmo ano e ninguém tem a certeza sobre qual delas é a primeira.
Existe uma descrição para essa primeira (dupla) edição: no final de 1920, o diretor da Biblioteca Nacional de Lisboa – Jayme Cortezão – dirigiu-se ao Real Gabinete Português de Leitura a fim de pedir a esta entidade uma transcrição da versão original d’Os Lusíadas.
Devo lembrar a V. Exª que, a par da 1.ª edição verdadeira que nos propomos reproduzir, existe uma outra, falsa, da mesma data. A verdadeira distingue-se por ter o bico do pelicano da portada voltado para a esquerda do observador e por, no 7.º verso da 1.ª instância do Canto I, ter as palavras “E entre” em vez de “Entre” simplesmente.
O Real Gabinete aceitou auxiliar a Biblioteca Nacional, mas deparou-se com um problema: alguns membros da instituição diziam estar na posse da versão original, enquanto outros insistiam que o exemplar existente nas prateleiras do Real Gabinete era a “segunda edição”.
Em busca da verdade, Alexandre de Albuquerque ficou responsável por estudar a obra e encontrar a original. O trabalho resultou na obra “As duas edições dos Lusíadas de 1572″, publicada em 1921 com 101 páginas. Descobriu-se que a portada utilizada para ilustrar a capa do poema já havia sido utilizada por Gil Vicente e que a segunda edição era a que tinha sido publicada por António Gonçalves.
Crê-se que a versão original da obra capital de Luís de Camões está na posse do Ateneu Comercial do Porto, mas existem vários livros fac-simile – isto é, cópias fieis – d’Os Lusíadas. Há um ano, soube-se da possibilidade de o Ateneu vender a obra para abater parte de uma dívida de 110 mil euros, algo que nunca veio a concretizar-se.
2 — Ninguém sabe quando morreu Camões
Apesar de ter eternizado os feitos históricos portugueses e de ter exaltado o espírito aventureiro da “ocidental praia lusitana”, de Luís de Camões diz-se que terá morrido na miséria e sem a consideração que merecia após lançar Os Lusíadas. Em que ano? Essa é mais uma incógnita que assombra a história do poeta português.
Só terá havido uma pessoa preocupada em oferecer um túmulo mais digno a Luís Vaz de Camões: D. Gonçalo Coutinho, um fidalgo que mantinha amizade com o poeta. Foi ele quem mandou construir uma lápide de mármore na Igreja de Sant’Ana, onde se diz ter sido sepultado para ficar perto do local onde vivia a mãe. O amigo do poeta mandou gravar as palavras:
Aqui jaz Luís de Camões. Príncipe dos poetas do seu tempo. Viveu pobre e miseravelmente e assim morreu, no ano de 1579. Esta campa lhe mandou aqui pôr D. Gonçalo Coutinho, na qual não se enterrará pessoa alguma.
Foi desta informação que veio o erro que se perpetuou na história: a morte de Camões foi tão pouco notada que ninguém se deu conta do verdadeiro ano em que o poeta perdeu a vida. A data verdadeira terá sido descoberta quando os historiadores tiveram acesso ao documento que Filipe I de Portugal entregou à mãe de Camões, onde a morte do poeta é datada em 1580.
3 — Os restos mortais de Camões… podem não ser dele
Durante cento e setenta e cinco anos o corpo de Camões ficou sepultado da Igreja de Sant’Ana. Embora tudo apontasse para que o poeta estivesse enterrado do lado esquerdo da entrada principal do edifício, existia a possibilidade de os restos mortais terem sido depositados na fossa da igreja.
Até que o terramoto de 1755 agitou Lisboa e destruiu o túmulo. Os restos mortais de Luís de Camões perderam-se no espaço e no tempo e o poeta perdeu a única homenagem digna que lhe foi feita.
Em 1854, no entanto, o ministro do Reino – Rodrigo da Fonseca – nomeou uma comissão que tinha como missão encontrar a sepultura e as ossadas de Camões. Os investigadores seguiram então para a reconstruída Igreja de Sant’Ana em busca de pistas. E terão encontrado: no relatório apresentado ao rei D. Luís I foi escrito o seguinte:
A uma certa altura viram-se ossos em forma que se lhe não tinha mexido. Alguns d’estes pois sem dúvida os de Luís de Camões; mas quais se nem era possível distinguir a sepultura.
Ainda assim, mesmo sem encontrar a pedra de mármore, a transladação iniciou-se e as ossadas foram levadas para o Mosteiro dos Jerónimos. As palavras dúbias do ministro levam Vítor Aguiar e Silva, escritor que se dedica aos estudos camonianos e autor do livro “Dicionário de Luís de Camões” a alertar: os restos mortais presentes na sepultura implantada naquele monumento podem não ser do aclamado poeta lusitano.
No século XIX, assumiu-se que aquelas eram as ossadas de Camões. Não havia um modo científico de determinar a identidade da descoberta, mas a exaltação patriótica impunha-se e era necessário homenagear o autor d’Os Lusíadas. Por isso, os ossos encontrados foram levados para o Mosteiro dos Jerónimos, mesmo sem as certezas necessárias. Estão depositados na ala sul do mosteiro, enquanto o lado norte é reservado a Vasco da Gama – um herói em Os Lusíadas.
De resto, o Panteão Nacional também detém uma arca tumular sem corpo como homenagem ao poeta.
4 — Luís de Camões e o seu carinho por um jovem fidalgo
Que o poeta português nutriu paixões assolapadas por várias mulheres ao longo da vida, não é novidade para ninguém: além das descrições d’Os Lusíadas, são conhecidos muitos poemas românticos que Camões terá dedicado às mulheres com quem se cruzou ao longo da vida. Uma delas terá sido D. Maria, a irmã do rei D. João III: reza a lenda que ambos viveram um amor platónico, impedido de ser consumado pelas diferenças sociais que os separavam. Mas existem mais histórias.
Conta-se também que Luís de Camões terá trabalhado, muito jovem, em casa de D. Francisco de Noronha, conde de Linhares, e de D. Violante e Andrade. Ninguém sabe ao certo o emprego que tinha (ou sequer se o tinha), mas foi referido alguma vez como “cavaleiro-fidalgo” nas tenças (remuneração pela prestação de um serviço) que o nobre lhe entregava. Ora, a mulher do patrão pode ter sido mais um objeto dos amores de Camões. E o sentimento terá sido correspondido: Violante havia casado por conveniência com um homem muito mais velho, por isso decidiu atender à paixão de Camões.
Mas o galã português do século XVI não se ficou por aqui: quando o romance com Violante terminou, logo o poeta se teria deixado encantar por D. Joana, uma das filhas do casal que já estava na adolescência. Outra mulher que terá caído nos braços de Camões foi Catarina de Ataíde, uma dama da rainha a quem o poeta escrevia versos. Os historiadores ainda não conseguiram determinar que Catarina era esta, já que havia três com o mesmo nome: a mulher de um nobre de Aveiro, a neta de Vasco da Gama ou a filha de um nobre amigo daquela família.
Se o amor camoniano invadiu todos os quartos femininos daquela casa, Camões também terá tido um carinho especial por António de Noronha, também ele filho dos donos da casa. O jovem nobre nasceu em 1536 e era pupilo do poeta. Trocavam muita correspondência onde transparecia a proximidade entre o nobre com cerca de 15 anos e Camões na casa dos 26.
Até que, a 29 de abril de 1553, António de Noronha morre numa batalha em Ceuta contra os mouros. Luís de Camões terá sofrido muito com a notícia e dedicou um soneto ao jovem morto aos 17 anos. A primeira quadra da composição dita assim:
Em flor vos arrancou, de então crescida
(Ah! senhor dom António!), a dura sorte,
Donde fazendo andava o braço forte
A fama dos Antigos esquecida.
Se esta quadra é um exemplo de um soneto dirigido quase de certeza a António de Noronha, outros parecem ser mais discretos – mas também mais emocionalmente intensos. É o exemplo disso os últimos dois tercetos de um poema, onde se lê:
E se vires que pode merecer-te
Alguma cousa a dor que me ficou
Da mágoa, sem remédio, de perder-te,Roga a Deus, que teus anos encurtou,
Que tão cedo de cá me leve a ver-te,
Quão cedo de meus olhos te levou.
5 — Luís de Camões era pago tarde e em más horas
De acordo com outra das lendas sobre a sua vida, em 1552 Luís de Camões terá agredido um membro da Corte de D. João III e sido preso. A seguir conta-se que esteve na cadeia de Tronco, em Chaves, durante um ano, antes de, perdoado pelo rei, se mudar para a Índia.
Se Lisboa lhe teria proporcionado uma vida boémia e incerta, o Oriente não parecia ser para ele. Por isso, voltou para casa à conta de amigos como Diogo de Couto, que lhe pagavam as viagens e as despesas. Vinha com Os Lusíadas na mala e correu para se encontrar com D. Sebastião para lhe mostrar a obra-prima. O rei ofereceu-lhe 15 mil reis anuais, a serem entregues durante três anos, e permitiu a publicação do poema.
Sendo assim, como é que Luís de Camões morreu tão pobre como antes? Até ao momento em que a peste o levou, a sua lenda fala-nos de um escravo chamado Jau – que teria viajado com o poeta desde a Índia – que o sustentava, mendigando pão de porta em porta para depois entregar a Camões.
Muitos têm acreditado que a carteira do poeta estava vazia por culpa de uma desorganização alarmante e do olhar leviano que Camões lançava à vida. É que a pensão que recebia era razoável para a época e podia servir perfeitamente para levar uma vida confortável. Isto se o pagamento acontecesse a horas.
Na verdade, a história não será tão linear: parece que D. Sebastião não cumpria com as datas de pagamento, pelo que o dinheiro do escritor português esgotava sempre. Chegados a 1578, a situação agravou-se com a morte do rei, a crise da sucessão e a subida ao trono de Filipe II de Espanha.
Julga-se que a saúde de Camões se deteriorou gravemente nessa: se a peste lhe atacava o corpo, a perda da independência portuguesa corroía-lhe a alma. E a desilusão era tão grande que, no leito da morte, Luís Vaz de Camões terá dito:
Fonte:ObservadorEnfim acabarei a vida e verão todos que fui tão afeiçoado à minha Pátria que não só me contentei de morrer nela, mas com ela.
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