A Trindade tem um coração: chama-se amor, e configura pessoa, Igreja e sociedade
Trata-se de encontrar uma analogia da vida capaz de nos conectar com a Trindade. Mas trata-se também de uma questão de experiência vivida. É nesta demanda que o amor surge como essa grande analogia que, de entre «as muitas trindades conhecidas por experiência», nos permite ver como na nossa experiência tocamos algo da lógica trinitária de Deus
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Deus não é definível. Sob nenhuma forma e em nenhuma circunstância. Ele é e será sempre outro relativamente a qualquer formulação nossa a seu respeito. Esta constatação não é um salvo-conduto nem para a preguiça intelectual nem para a desistência teológica. É, antes, uma vénia à verdade da teologia e um convite à humildade do teólogo. A este compete sempre procurar uma palavra justa sobre Deus, porque a palavra (logos), essa sim, mesmo nos seus limites, é capaz de Deus (capax Dei). Palavra aberta e, por isso, ajustada à grandeza divina. Certamente em nenhum outro lugar esteve a humanidade tão próxima dessa palavra digna e capaz de Deus como quando, no Novo Testamento, a primeira carta de São João afirma: «Deus é amor» (cf 1 Jo 4,8). Não é uma definição de Deus. Mas é certamente a forma mais justa e ajustada de descrever o que Ele seja.
O amor é, sem sombra de dúvidas, o grande motivo que torna possível falar da Trindade. A própria formulação trinitária da «teo-logia» cristã pode ser vista como um desdobramento dessa afirmação neotestamentária. Por um lado, Deus não tem apenas gestos de amor. Ele é amor. É-o em si próprio. Por outro, trata-se de um amor digno desse nome. Não um amor que, solipsisticamente, se compraz consigo. Antes um amor que gera um outro. Antes um amor que recebe do outro todo o seu ser. É um amor assim, substancial e pessoal, que interpreta e dá forma à «teologia» dos cristãos.
O amor é um elemento possível da nossa experiência do outro. Quando se verifica, será mesmo um elemento determinante dessa experiência. Não o afirmo apenas por referência à «teo-logia». Digo-o, antes de mais, da experiência do outro que todos conhecemos e fazemos. Amar é tantas vezes a via existencial para chegar àquelas conclusões a que o pensamento acede por outros caminhos. Na experiência do amortorna-se por demais evidente como o outro me devolve a verdade do que sou eu. Como se o eu estivesse mais nesse outro que em si próprio. Como se o eu só no outro verdadeiramente se esclarecesse e consumasse. A via afetiva será, talvez, a via ordinária para o percebermos, a via pela qual nós primeiro, e em maior número, aprendemos o quanto somos «inter-dependentes» uns dos outros. Aquilo que a filosofia, com as suas ferramentas, nos ensina sobre o outro, ensina-nos igualmente a experiência do amor de forma mais democrática e estimulante.
Foi precisamente aí, na experiência do amor, que Santo Agostinho (354-430), na sua infatigável procura da verdade, encontrou a superior analogia para penetrar no mistério da Trindade. A sua questão não está muito longe da nossa: «A partir de que analogia ou de que comparação com as coisas conhecidas acreditamos nós, para amarmos o Deus que ainda não conhecemos?». Trata-se de encontrar uma analogia da vida capaz de nos conectar com a Trindade. Mas trata-se também de uma questão de experiência vivida.
É nesta demanda que o amor surge como essa grande analogia que, de entre «as muitas trindades conhecidas por experiência», nos permite ver como na nossa experiência tocamos algo da lógica trinitária de Deus:
«o amor é pertença de alguém que ama, e com o amor ama-se alguma coisa. São, como se vê, três coisas: aquele que ama, aquilo que é amado e o amor. Que é então o amor senão uma vida que une ou procura unir duas coisas, aquele que ama e aquilo que é amado? [...] São três as coisas, aquele que ama e aquilo que é amado e o amor.»
Inscrita na dinâmica do amor humano, há, pois, esta trindade: o amante, o amado e o amor. Isto é algo que, quando dissecamos a experiência do amor, havemos de encontrar sempre lá. Não há amor se não houver um eu que ame. Não amor se não houver um outro que é amado. Não há amor sem amor, isto é, sem esse laço que une de maneira sublime o mesmo e o outro, o eu e o tu. Isto assim em nós e entre nós. Mas também isto assim no Deus amor: uma trindade de amante, amado e amor.
Um primeiro impulso levaria a identificar cada elemento desta trindade do amor com cada uma das Pessoas da Trindade divina: o Pai, o amante; o Filho, o amado; o Espírito, o amor. Não julgo ser possível recusar esta aplicação da analogia trinitária do amor. Mas julgo também que seria redutor ver nesta distribuição a única possibilidade trinitária da experiência do amor. Agostinho, pelo menos, não o faz. Mais do que aplicá-la à Trindade, ele deixa-a no ar como sugestão trinitária, insinuando-a como uma analogia aberta. Esta sua circunspeção permite que a analogia continue a falar, podendo dizer outras coisas acerca do amor e da Trindade, porque não a fecha num só sentido. Pelo contrário, ela deixa que o dinamismo da vida trinitária possa dizer outras coisas de si mediante esta mesma analogia do amor.
Ao cético do seu tempo, mas também do nosso, a esse que luta com a imagem trinitária de Deus, Agostinho interpela de modo direto e franco: «Tu dirás: "Eu vejo o amor, [...] mas, ao vê-lo, não vejo a Trindade." Bem pelo contrário, se vês o amor vês a Trindade. Levar-te-ei, se puder, a ver que vês». Eis uma resposta às perplexidades com a Trindade que, mais do que do século v, nos chega diretamenre da nossa experiência. É que também nós, quando vemos o amor, vemos qualquer coisa de trinitário, mesmo que disso não nos apercebamos. É que também nós, quando experimentamos o amor ao outro,experimentamos qualquer coisa de trinitário, mesmo que disso nem sempre tenhamos consciência. O amor inscrito na nossa experiência do outro mostra-se, pois, uma gramática ajustada para a interpretação da fé trinitária. Nele podemos ver que já vemos qualquer coisa da Trindade. (...)
A experiência do amor tem sempre qualquer coisa de uno e trino, no sentido de que tem sempre qualquer coisa de unidade e alteridade. O amor une o eu e o tu. Mas o amor conserva o tu sempre como um outro.Não o dilui nem o assimila no eu. Não saberemos descrever o amor sem conservarmos estas duas verdades. Tal como não saberemos descrever o Deus Trindade sem conservarmos que as pessoas nele se unem para ser um só Deus, sem contudo diluírem ou assimilarem a sua alteridade pessoal e divina. Eis como se poderá ver, de forma vital, na experienciado outro e, sobretudo, na experiência de amor ao outro muito daquilo que o Cristianismo confessa em Deus Trindade.(...)
Alexandre Palma
In "A Trindade é um mistério", ed. Paulinas Fonte: Pastoral da Cultura-Publicado em 21.05.2016
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