VAMOS FALAR SOBRE O LUTO
Viver o luto para não viver de luto
O nascimento e a morte têm muitas coisas em comum - uma reflexão que vale a pena ler!
Acordar. Respirar. Pensar. Existir. Não há um verbo que não doa durante o luto. Talvez dormir alivie, que é quando a dor adormece. Momento em que o medo desperta: será preciso enfrentar o dia seguinte.
Perder quem amamos é morrer um pouco, mesmo que o coração insista em bater. O luto nos torna um lugar ruim. Queremos fugir de nós mesmos, emprestar outra vida, perder a memória, trocar de papel. Qualquer coisa que nos tire a dor com a mão, que nos salve do horror de sentir que alguém foi amputado de nós. Não há alívio imediato.
A morte é uma verdade disfarçada de absurdo. Não se arrepende, não volta atrás, é desfecho. O verdadeiro “para sempre”. É telefone que não toca, silêncio que ensurdece, pesadelo que não acaba, falta que jamais deixará de ser.
Enlutar-se é se mudar para uma espécie de cela blindada, da qual saímos somente para intermináveis e dolorosos banhos de sol. Uma solitária para a qual queremos voltar logo – embora triste e sombria, ela ainda é o lugar onde nos sentimos menos desconfortáveis.
Eu me lembro de vagar pela cidade como numa cena sem áudio. Olhava ao redor e me perguntava com que direito as pessoas sorriam, se dentro de mim as luzes estavam apagadas. É assim até que a gente se acostume. A morte se repete muitas vezes. Ao acordar, está lá a morte de novo. A cada lembrança, outra morte. Até que em nós ela morra de fato — e isso demora.
Quando meu filho nasceu foi parecido. Só que era vida. Toda hora a vida de novo. A cada instante olhar e ver: nasceu, é meu filho. Respira, mexe, chora, mama, é vida.
Se nascimento e morte são duas verdades que crescem diante de nós, até que possamos de fato acreditar, calhou que na vida experimentei os dois de forma simultânea. Eu estava grávida quando perdi o pai do meu filho que iria nascer. Foi viuvez, mas também foi aborto: a frase cortada em pleno gerúndio. Com o coração dele que parou de bater, morreu nosso futuro.
O que mais doía no luto era não conseguir que as pessoas sentissem a minha dor. Falei compulsivamente. Escrevi de forma obsessiva. Até que as pessoas também chorassem. E elas choraram – mais as suas dores que as minhas, é verdade, mas isso também é empatia. E quando cada momento latente de falta se transformava em um texto delicado, quando as palavras conseguiam fazer o outro vestir a minha dor, a tristeza virava alegria: que alívio me sentir compreendida. Numa espécie de alquimia incidental, transmutei dor em sorriso.
Veja você como a vida é chegada numa ironia: o luto é praticamente um parto. É preciso reaprender a viver sem a pessoa que se foi, como quem nasce de novo – e quem permanecerá o mesmo? Viver o luto é renascer – e nascer é exercício solitário. É preciso olhar o mundo novamente e re-conhecer-se diante dele.
Mas, como criança que cresce, o luto demanda tempo. Enquanto isso, não sai por aí despertando sorrisos. Num mundo programado para a felicidade, o luto constrange. Abre um hiato de mal estar. A morte é certeza demasiado espinhosa para que se toque nela com naturalidade.
O momento menos solitário talvez seja a primeira semana, o primeiro mês, enquanto duram os rituais de despedida. Passam-se alguns dias e todos retomam suas vidas. Ninguém mais quer falar sobre isso. A não ser o próprio enlutado, que não quer falar de outra coisa. Agora é que a dor vai começar. E parece que não vai parar nunca. Talvez fique para sempre mesmo: a perda vai se alojando no corpo, como uma bala encapsulada, até não incomodar mais. Com paciência, o tempo muda os afetos de lugar. Passa a morar em mim quem se foi.
E então a dor me leva a outros lugares. Abre meus olhos, me ensina a mudar de assunto. E assim, distraidamente, vai me mostrando a vida de novo – agora outra, porque sempre é tempo para mudar.
A perda pede recolhimento como um pós-operatório, ou reincide. A ferida se abre de novo. É preciso respeitar o luto (e entregar-se a ele, sem medo) até que chegue sua hora de ir embora. Cada um descobre sua forma de colocar a dor para trabalhar em outra direção. A falta pode ser, então, bastante reveladora.
Quando pequenos, aprendemos com os livros infantis. Depois de adultos, as pessoas que se vão passam a nos fazer pensar sobre nossas vidas. Lembram-nos a urgência de amar quem está vivo e perto. E ensinam que fazer escolhas não precisa ser tão sofrido, nem carece do peso da certeza de ser para sempre. Nenhum de nós é para sempre.
A vida é curta, sim. Não vem com prazo de validade nem traz garantias. Cada fim de ano é oportunidade única para afetos reunidos – riso e choro, inclusive. Comemore. Mesmo com um lugar vago à mesa, a família está ali. O peru está de dar água na boca. As crianças correm lá fora. O brinde à vida não pode esperar.
* * *
Em 2008, a publicitária e escritora Cris Guerra lançou o livro “Para Francisco“, no qual apresenta ao filho o pai que ele não conheceu (Guilherme morreu no final da gravidez de Cris). Ela está de volta ao livro para preparar sua segunda edição, com novos textos, e publicou aqui no Vamos Falar Sobre o Luto? este artigo inédito feito especialmente para o site.
Após ter lido o texto e os comentários sobre a partida de alguém de quem gostamos senti necessidade de partilhar um momento idêntico da partida da mãe em 29 de Julho deste ano. Se senti o mundo ir embora quando perdi o meu pai, desta vez senti e sinto, nos momentos de silêncio absoluto e já passaram 5 meses, que, de repente, a minha mãe está ali à porta para a ir ajudar, este sentimento entristece-me e e dá-me conforto ao mesmo tempo, pois sei que ela partiu para o Pai e isso ameniza a dor da perda! Só acreditando que voltaremos a unirmo-nos na vida definitiva do Alem, seremos capazes de ultrapassar os momentos dolorosos da falta da pessoa que amamos!
Escrevi muitas coisas parecidas, parece que nunca passa, ameniza em alguns momentos, mais nunca passa, é uma dor de alma, é entender que não somos Deuses de nossas vidas, que não temos a rédea de nada e acreditar na vida eterna e pensar de fato no céu, como almejo este céu, aonde toda lágrima será enxugada, onde não haverá mais luto, nem dor, a saudade dói e dói muito, também já pensei em escrever um livro a respeito da minha vida, porque é algo que deixaremos para aqueles que querem se sentir compreendidos e amados e não julgados pela dor que sentem.
Obrigado pelo texto, parece que li o que vivi, tudo isso é a mais pura verdade.
Estou sentindo na pele as palavras deste texto...desde que minha mãe foi embora para o outro lado da vida em Junho desse ano,sinto uma dor sem comparação, não me reconheço mais como parte desse mundo...e sinto também que as pessoas ao meu redor não conseguem entender a dimensão da minha dor...Para mim,não existe mais Natal...no Natal foi como se eu estivesse velando novamente o corpo da minha mãe...e a alegria das pessoas doía em mim (principalmente daquelas que de alguma forma eu sempre acreditei que iam compartilhar da minha tristeza)...Peço em oração,em todos os momentos, que Deus me leve também! ...nada é capaz de minimizar a minha dor...minha mãe,era muito mais que mãe(que já não é pouca coisa),ela era minha companheira de vida!
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