Questões de fé para quem crê e não crê: O cristão precisa do Antigo Testamento?
Admiro o esforço dos teólogos cristãos para valorizar o Antigo Testamento; compreendo a existência de uma tradição da Igreja que propôs aos seus fiéis ler as Escrituras bíblicas na liturgia, interpretando-as à luz do Novo Testamento. Algumas páginas são extraordinariamente nobres a nível literário, outras valem igualmente para nós, cristãos (como os Salmos ou alguns livros proféticos), mas sejamos honestos: o Evangelho não é suficiente para nós, cristãos? Porquê investir tantos recursos teológicos para justificar capítulos inteiros do Antigo testamento de regurgitam de santa crueldade e imoralidade, não tão distantes de algumas suratas do Corão?
Porquê perder tempo a explicar o Antigo Testamento, a interpretá-lo para o justificar nas suas passagens difíceis e desconcertantes, quando temos nas mãos a luz límpida do Novo Testamento para o substituir? O que subjaz a esta questão é a "substituição": a Nova Aliança selada em Cristo não substitui a Aliança do Sinai e de Moisés, tornando-a obsoleta?
Esta tese não é nova, tendo já sido formulada por um teólogo do séc. II, Marcião, que defendia o dualismo entre o Deus cruel do Antigo Testamento e o Deus de amor anunciado por Cristo. É preciso sublinhar que a Igreja reagiu sempre com vigor contra esta teoria, condenando-a graças ao labor dos seus primeiros grandes pensadores (Ireneu, Tertuliano, Orígenes, etc.). Mas a ideia permaneceu, até na arte: a fachada da catedral de Estrasburgo personifica a sinagoga através de uma mulher de olhos tapados que deixa cair das suas mãos as tábuas da lei, enquanto que a Igreja, radiosa, avança com a cruz e o cálice.
Esta conceção deixa-nos perplexos em virtude do diálogo inter-religioso caro ao Concílio Vaticano II, mas também por causa de uma frase lapidar de Cristo: «Não penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas. Não vim revogá-los, mas levá-los à perfeição» (Mateus 5, 17). Também é verdade que Ele acrescenta: «Ouvistes o que foi dito aos antigos [...]. Eu, porém, digo-vos...». Observando com atenção, estas antíteses em Mateus (5, 21-48) são menos uma negação do passado do que um esforço para libertar os preceitos antigos de um minimalismo literário e mostrar o seu alcance positivo radical, conduzindo-os a um «mais além» de plenitude; é por isso que Ele condena não apenas o homicídio mas também toda a ofensa contra o próximo.
Por seu lado, S. Paulo não combate a Torá, a lei bíblica - que declara santa e pedagógica para conduzir a Cristo -, mas a sua interpretação legalista e voluntarista que se encontra em alguns meios do judaísmo da época. É ele que lembra que a aliança divina com Israel nunca foi revogada definitivamente porque «os dons e o chamamento de Deus são irrevogáveis» (Romanos 11, 29).
Como pode um cristão acolher corretamente os dois Testamentos? Convém considerá-los como a expressão de uma única história de salvação - justamente porque é uma história, uma sucessão temporal e progressiva - comporta etapas e faz parte de um projeto transcendente unificado, a salvação. Cada etapa deste caminho tem a sua importância e a sua eficácia, numa tensão global rumo ao futuro, rumo a Cristo.
O judaísmo tende para o futuro da plenitude messiânica; o cristianismo apoia-se igualmente no passado salvífico de Israel, explicando-o no presente cristológico [de Cristo] que estamos a viver. Eis que se chega a um diálogo: não é possível acolher e compreender o discurso final se não se presta atenção a cada etapa do discurso, com cada uma das suas fases.
Quando se lê a Bíblia, segue-se um duplo processo: de um lado, a abertura do passado veterotestamentário [do Antigo Testamento] para o messianismo, e, portanto, para o presente cristão; de outro, a retrospeção do presente cristão para reencontrar as raízes e as motivações afirmadas e realizadas no passado profético de Israel. Este duplo processo explica-se porque os dois Testamentos são "teo-logia", discurso único ("lógos") do Deus único ("Theós").
Trata-se de um discurso divino transcendente, que se expande e alarga na sucessão das etapas do tempo e da história, sendo por isso progressivo, ritmado por elementos ligados aos acontecimentos humanos, às linguagem epocais, ao realismo da incarnação através da qual Deus se revela não na pureza dos céus, da transcendência, mas no interior do peso do terrestre da história da humanidade.
Este caminho conhece inevitavelmente etapas difíceis e provisórias, sinal de um itinerário histórico em desenvolvimento e em tensão para uma purificação e uma plenitude. Todavia, estas etapas contêm sempre uma semente de salvação, de verdade, de luz, porque participam no projeto divino transcendente único e unificado.
Card. Gianfranco Ravasi
Biblista, presidente do Pontifício Conselho da Cultura
150 questions à la foi, ed. Mame
Trad. / edição: Rui Jorge Martins
Biblista, presidente do Pontifício Conselho da Cultura
150 questions à la foi, ed. Mame
Trad. / edição: Rui Jorge Martins
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