«Há mais mistérios entre Saramago e Deus do que possamos prever»
JOSÉ SARAMAGO |
A frase é da investigadora brasileira Selma Ferraz, que José Tolentino Mendonça cita na mais recente crónica que assina no semanário "Expresso". O texto começa por chamar a atenção para o «interessantíssimo ensaio» de Manuel Frias Martins, "A espiritualidade clandestina de José Saramago", lançado pela fundação homónima.
«A tese deste académico, também importante crítico literário, é a de que existe "um subtexto espiritual clandestinamente operativo" que atravessa a literatura de Saramago», perspetiva que «colide com o autoconfessado ateísmo» do Prémio Nobel da Literatura e com a «hermenêutica canónica da sua obra», escreve Tolentino.
Frias Martins, prossegue o poeta e biblista, propõe «que a invocação do ateísmo funciona "como uma espécie de ocultação tática de um segredo autoral": a espiritualidade, precisamente».
Se a literatura de Saramago pode ser interpretada como lugar teológico, é à luz da «antiteodiceia», da «desteologização», de uma «antiépica de Deus», acompanhados pela «crítica sistemática», o «distanciamento» e a «paródia», assinala o sacerdote.
Tolentino Mendonça lembra um texto do teólogo espanhol Juan José Tamayo, «que caracteriza o universo romanesco de Saramago como tratando-se de uma teologia negativa, que o aproxima do radical despojamento das formas de crença praticado, por exemplo, por uma certa tradição mística».
«De facto, a crítica do escritor exerce-se contra as representações de Deus, contra as suas imagens ideológicas e históricas mais do que sobre o Deus transcendente e irrepresentável», defende o vice-reitor da Universidade Católica.
Saramago exercita, ainda que de modo «abrasivo e extremo», a «purificação da linguagem religiosa», ao passo que «os crentes sabem que a sua linguagem é insuficiente para nomear o divino, quando não inadequada».
Para Tolentino Mendonça, «o grande contributo de Saramago para o diálogo interdisciplinar entre teologia e literatura não reside no que ele escreve sobre Deus», mas a forma «como a sua escrita ilumina o enigma humano».
«A qualidade e a originalidade da reflexão antropológica que José Saramago realiza é absolutamente espantosa e, com o tempo, tornar-se-á sempre mais fecunda», sendo aqui que «a sua capacidade de escutar o inaudível se torna vertiginosa.»
No fim, a crónica aponta para o místico Mestre Eckhart: «Quem de Deus não conhece senão as suas criaturas não precisa de outras catequeses ou de sermões. Porque cada criatura é um inteiro livro sobre Deus».
Edição: Rui Jorge Martins Publicado em 10.02.2015
Sem comentários:
Enviar um comentário