Quantos mais terão de morrer no Mediterrâneo?
O que separa os fortes dos fracos é fazer as coisas acontecer. E a Europa não está a fazê-lo. Talvez um dia perceba que é por estas e por outras que abdicou da sua relevância internacional. Na semana passada, afundou-se uma embarcação de migrantes, 24 horas após a sua partida da costa da Líbia, estimando-se 400 mortes. Foi mais um caso, numa longa série de naufrágios no mar Mediterrâneo, convertido em cemitério de gente que fracassou na fuga à má sorte de uma vida sem condições ou dignidade. Mas foi também uma desgraça maior do que a de Lampedusa, em 2013, quando morreram 360. À época, gerou-se um intenso debate e generalizou-se a convicção de que se impunha uma resposta europeia. Desta vez, foi uma notícia como outra qualquer, daquelas que narram desastres longínquos. Só agora, com a informação de um outro naufrágio que consumiu 700 vidas, talvez mais, o assunto penetrou definitivamente na agenda. A rotina do horror tornou-nos indiferentes?
Os discursos dizem que não. Ontem, o Papa Francisco e líderes europeus assinalaram a urgência do drama, comprometeram-se com medidas rápidas e propuseram uma reunião de emergência. Mas, infelizmente, as acções sugerem que sim, que essa indiferença ganhou raízes na política europeia. Em 2013, após Lampedusa, surgiu o programa Mare Nostrum, com a missão de patrulhar as águas e salvar vidas. Hoje, esse programa foi descontinuado e arrumado nos arquivos. Durou pouco, não pelos resultados mas porque custava muito dinheiro – cerca de 9 milhões de euros/ mês. No seu lugar, emergiu uma versão low-cost, com proporcional redução do perímetro de acção, mais próximo da costa italiana e mais longe dos pontos críticos de naufrágio. Isto enquanto se observa um aumento dos fluxos migratórios de gente desesperada por escapar de uma Líbia desfeita e tornada viveiro de todo o tipo de tráfico e terrorismo. Tudo somado, as consequências estão à vista: morreram este ano mais de mil pessoas a atravessar o Mediterrâneo, vinte vezes mais do que em igual período do ano passado (47). Podemos até questionar a fiabilidade dos números – muitos terão morrido no anonimato, longe de tudo e todos e destas estatísticas. Não podemos é fingir que a Europa está a conseguir lidar com a situação.
Haverá muitas razões que justifiquem essa incapacidade, até porque este é um tema complexo e sem resolução simples. Mas reconhecer essa complexidade não é o mesmo do que aceitar o ser difícil como legitimação para a inacção política (ou para a tradicional opção europeia de empurrar os problemas com a barriga). Neste caso, a raiz do impasse é também outra: a Europa vive paralisada pela crise, pela necessidade da gestão delicada dos vários orçamentos nacionais e pelo receio da afirmação de partidos populistas de direita anti-imigração. É difícil imaginar um cenário pior para se lidar com migrantes náufragos: ninguém quer acarretar com custos financeiros e ninguém quer assumir os custos políticos de acolher imigrantes numa Europa onde a imigração é, lamentavelmente, cada vez mais o tema sensível em que se evita tocar. É uma tempestade perfeita. Mas é uma intempérie que a Europa tem de atravessar. Afinal, não estão apenas milhares de vidas em risco, mas também a credibilidade europeia no contexto da ordem internacional: o que vale a Europa se a defesa dos seus valores nunca saltar dos discursos para a realidade?
É esse o desafio que está na mesa a ganhar pó: através da acção política, reconhecer que a tragédia diária que nos chega pelo mar é um problema moral e político dos europeus, não apenas uma maçada logística que, por coincidência geográfica, acontece às portas da Europa. E é este o embaraço a que se assiste. A Europa reconhece a gravidade da situação, sabe o que deve e o que tem de ser feito mas, entre o medo dos populismos e a falta de força, só o fará quando não tiver alternativas. Quando se sentir obrigada a admitir que esta é mesmo uma questão europeia, que testa a capacidade dos Estados-membros da UE para implementar aquilo que apregoam – a defesa incondicional dos direitos humanos e da dignidade humana. Até lá, recorre-se à técnica do penso-rápido – não resolve, mas ajuda. E isso, obviamente, não chega.
Falar é fácil, dar lições de moral também, mas o que separa os fortes dos fracos é fazer as coisas acontecer. E a Europa, amarrada pela crise e pelos populismos anti-imigração, não está a fazê-lo. Talvez um dia os europeus percebam que é por estas e por outras incapacidades que abdicaram da sua relevância (política e moral) na ordem internacional. Agora, enquanto se espera que a Europa reúna e decida se tem ou não a coragem para fazer a diferença, resta cruzar os dedos e ir fazendo as contas: quantos mais terão de morrer no Mediterrâneo até que a Europa assuma as suas responsabilidades?
Haverá muitas razões que justifiquem essa incapacidade, até porque este é um tema complexo e sem resolução simples. Mas reconhecer essa complexidade não é o mesmo do que aceitar o ser difícil como legitimação para a inacção política (ou para a tradicional opção europeia de empurrar os problemas com a barriga). Neste caso, a raiz do impasse é também outra: a Europa vive paralisada pela crise, pela necessidade da gestão delicada dos vários orçamentos nacionais e pelo receio da afirmação de partidos populistas de direita anti-imigração. É difícil imaginar um cenário pior para se lidar com migrantes náufragos: ninguém quer acarretar com custos financeiros e ninguém quer assumir os custos políticos de acolher imigrantes numa Europa onde a imigração é, lamentavelmente, cada vez mais o tema sensível em que se evita tocar. É uma tempestade perfeita. Mas é uma intempérie que a Europa tem de atravessar. Afinal, não estão apenas milhares de vidas em risco, mas também a credibilidade europeia no contexto da ordem internacional: o que vale a Europa se a defesa dos seus valores nunca saltar dos discursos para a realidade?
É esse o desafio que está na mesa a ganhar pó: através da acção política, reconhecer que a tragédia diária que nos chega pelo mar é um problema moral e político dos europeus, não apenas uma maçada logística que, por coincidência geográfica, acontece às portas da Europa. E é este o embaraço a que se assiste. A Europa reconhece a gravidade da situação, sabe o que deve e o que tem de ser feito mas, entre o medo dos populismos e a falta de força, só o fará quando não tiver alternativas. Quando se sentir obrigada a admitir que esta é mesmo uma questão europeia, que testa a capacidade dos Estados-membros da UE para implementar aquilo que apregoam – a defesa incondicional dos direitos humanos e da dignidade humana. Até lá, recorre-se à técnica do penso-rápido – não resolve, mas ajuda. E isso, obviamente, não chega.
Falar é fácil, dar lições de moral também, mas o que separa os fortes dos fracos é fazer as coisas acontecer. E a Europa, amarrada pela crise e pelos populismos anti-imigração, não está a fazê-lo. Talvez um dia os europeus percebam que é por estas e por outras incapacidades que abdicaram da sua relevância (política e moral) na ordem internacional. Agora, enquanto se espera que a Europa reúna e decida se tem ou não a coragem para fazer a diferença, resta cruzar os dedos e ir fazendo as contas: quantos mais terão de morrer no Mediterrâneo até que a Europa assuma as suas responsabilidades?
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