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quarta-feira, 2 de setembro de 2015

O QUE SABES ACERCA DA TERRA?

«Céu, Tu; Terra, Tu»

 
         Os católicos celebram hoje, 1 de setembro de 2015, o primeiro Dia Mundial de Oração pelo Cuidado da Criação, instituído pelo papa Francisco. A data será assinalada anualmente, como já o faz a Igreja ortodoxa.
 
«Sabes quem determinou as suas dimensões [da terra]? Quem estendeu a régua sobre ela? Sabes em que repousam as suas bases, ou quem colocou nela a pedra angular?» Estas interrogações prementes que Deus, o Criador, lança a Job no fim do longo tormento do «homem de Uz» (Job 38,5-6), fazem intuir a estrutura da cosmologia bíblica. O universo é concebido como uma imensa plataforma circular ou quadrada (fala-se muitas vezes das suas «quatro extremidades»), apoiada sobre poderosas colunas que a sustentam sobre a extensão do oceano, símbolo das águas caóticas e do nada. Eleva-se sobre ela a grandiosa cúpula do céu.
Para reconstruir a imagem bíblica da terra há que regressar à página inicial da Escritura, ao livro do Génesis, e, por uma questão de exatidão, ao relato da criação. Assim como os continentes aparecem graças à retração dos oceanos, também a criação aflora graças à retração de Deus, que causa e domina a realidade da criação, mas sem a absorver. Esta imagem de Hölderlin permite-nos ilustrar a visão bíblica da finitude da terra, do seu limite, do facto de ela estar suspensa sobre o oceano do nada.
Tem sido muitas vezes observado que o nada é inexprimível numa cultura realístico-simbólica como a semita, que ignora abstrações, conceitos formais e essenciais. Contudo, na página do Génesis atrás referida, envereda-se pela expressão da "creatio ex nihilo", como dirá, literalmente, a linguagem teológica medieval. Esta é, obviamente, simbólica. Com efeito, no segundo versículo do Génesis, lemos: «A terra era "tohu wabohu" e as trevas cobriam o abismo.»
Esse "tohu wabohu" é um termo onomatopaico que, também na sua fonética grosseira e rude, evoca uma superfície desértica, desolada e esquálida, indicando por isso ausência de vida, silêncio, morte, ou seja, precisamente o contrário daquilo que Deus fará imediatamente florescer. Há, depois, as «trevas», negação da luz; "’or", «a luz», será, com efeito, a primeira entidade a aparecer.
Por fim há o «abismo», em hebraico "tehôm" (faz referência a Tiamat, a divindade mesopotâmica do caos), que se escancara sob a terra, concebida precisamente – segundo o que acabámos de dizer – como uma plataforma sustentada por colunas que se elevam sobre o abismo vertiginoso, onde se acumulam as águas caóticas (outro símbolo negativo).
Deserto, trevas e abismo representam a tríade obscura do nada, que é vencida pela palavra divina criadora. A criação, que não é infinita porque assim se identificaria com Deus, mantém-se suspensa sobre as crateras do nada, de onde saiu mediante o «dizer» de Deus e o seu "bara’", que é aquele verbo colocado no «título» do Génesis («No princípio Deus criou ["bara’"] o céu e a terra»), e que remete simbolicamente para o trabalho do lenhador, daquele que corta os troncos, e do pedreiro, que também tem um equivalente no verbo fenício, língua afim ao hebraico. Ora, este equilíbrio instável entre ser e nada, sobre o qual a terra se mantém, tem a sua representação simbólica na linha de rebentação das ondas, no litoral, onde parece estender a fronteira móvel entre "jam", o «mar», e "’erez", a «terra».
 
Nos mitos cananeus, próprios da população indígena da Palestina, Jamm era uma divindade negativa que se opunha a Baal, o deus da vida e do ser. A Sabedoria divina, no hino do capítulo 8 dos Provérbios, assiste o Criador no ato delicado de suspender a terra sobre o mar caótico, sinal do nada: «[Eu estava a seu lado] quando fixava ao mar os seus limites, para que as águas não ultrapassassem a sua orla» (Pr 8,29). O terror do nada, que precisamente na linha de rebentação da costa marinha tenta alcançar o esplendor da criação terrestre, só é superado porque Deus se ergue de dedo apontado contra o adversário aparentemente físico, mas na realidade metafísico. Representado como uma criança rebelde envolta em faixas, ou como um prisioneiro perigoso aferrolhado num cárcere de segurança máxima, o mar, embora continuando a agitar-se com as suas ondas e os seus monstros, é submetido ao imperativo divino, como ainda hoje se lê no livro de Job: «Quem pôs diques ao mar, quando, impetuoso, saía do seio materno, quando Eu lhe dava por manto as nuvens, e o enfaixava com névoas tenebrosas?
Encerrei-o dentro dos limites que tracei, e pus-lhe portas e ferrolhos, dizendo: “Chegarás até aqui; não mais além; aqui se quebrará o orgulho das tuas ondas!”» (Job 38,8-11).
A força agressiva do mar-nada-infernos será admiravelmente caracterizada por Job nos dois monstros marinhos: Behemoth, a Besta por excelência, descrita (em Job 40,15-24) como um colossal hipopótamo, e Leviatã, o réptil descrito (em Job 40,25-41,26) como um poderoso crocodilo, transformado, na famosa citação do escritor americano Herman Melville (1819-1891), no implacável cetáceo "Moby Dick". A representação do Leviatã é, em Job, uma celebração do senhorio supremo do Criador, que até se pode dar ao luxo de brincar com ele como um passarinho, atando-o para divertimento das crianças (cf. Job 40,29). Também é por isso que, segundo uma tradição judaica, o Leviatã será morto e preparado para o banquete messiânico dos justos. É por isso que a humanidade, segundo o salmista, se pode aproximar sem medo do «mar grande e vasto, onde se agitam inúmeros seres, animais grandes e pequenos». E continua: «Nele passam os navios e ainda o Leviatã, monstro que Tu criaste, para ali brincar» (Sl 104,25-26). A extrema surpresa será na re-criação apocalíptica, quando João, contemplando o «novo céu» e a «nova terra», se aperceberá de que «o mar já não existia» (Ap 21,1). A instabilidade e o limite da terra serão então resolvidos mediante a eliminação da realidade negativa em termos simbólicos, o mar, precisamente.
Mas voltemos a contemplar a terra saída das mãos do Criador, segundo a narração septenária do citado capítulo 1 do Génesis: vegetação, mundo animal e humanidade povoam o horizonte terrestre. Nós, porém, gostaríamos de referir ainda o citado primeiro discurso de Deus nos capítulos 38 e 39 de Job, um fresco estupendo em dezasseis estrofes – segundo a mística dos números, os quatro pontos cardeais de uma topografia perfeita – que faz fluir diante do leitor a irreprimível fantasia do Criador, cujo "’ezah", cujo «plano», escapa à catalogação racional do homem, revelando uma racionalidade superior em que tudo tem unidade e sentido.
 
Este discurso divino é um momento capital na economia do poema teológico de Job. A plataforma terrestre suspensa sobre o abismo, o mar, a aurora, a luz e as trevas, a neve e o granizo, a chuva, o orvalho e o gelo, os astros e a mecânica celeste, os furacões, os animais selvagens, a genética da cabra montês, a liberdade instintiva do onagro ou asno selvagem, a força do búfalo, a rapidez da avestruz, a beleza do cavalo, o sabor da presa para o faisão: Estamos na presença de uma espécie de filme transbordante de maravilhas, que partem da arquitetura cósmica para chegar ao misterioso afastamento das cabras monteses no momento do parto, incluindo a elegância ousada do cavalo e a estupidez desajeitada da avestruz. São estas as obras da decoração terrestre que o Criador espalhou sobre a superfície terrestre.
 
Desconcertante mistura de ordem e extravagância, a terra atormenta e exalta o homem. Numa página de luto, Jeremias descreve uma terrível seca, flagelo endémico da Palestina, como também o são os gafanhotos devoradores cantados por outro profeta, Joel (cf. Jl 2,3-9):
«Os seus chefes enviaram os servos à procura de água. Estes foram às cisternas, porém, não encontraram água, e voltaram com os recipientes vazios; cheios de vergonha, cobrem a cabeça. Como o solo está ressequido e não cai chuva sobre a terra, os agricultores desesperam e cobrem o rosto de tristeza. Até a gazela, depois de dar à luz no campo, abandona a sua cria, porque não há verdura. Os asnos selvagens param nos montes e aspiram o ar, como chacais. Os seus olhos perderam o brilho, por falta de erva» (Jr 14,3-6).
Vem, contudo, o inverno, e Deus «espalha a neve como aves que pousam; ela cai como gafanhotos que se abatem; os olhos admiram a beleza da sua brancura e o coração maravilha-se de a ver cair. Deus derrama sobre a terra a geada como sal; quando se congela, torna-se como pontas de espinhos» (Sir 43,18-19).
Vem depois a primavera, com as suas chuvas fecundas. Cabe ao Salmo 65 oferecer-nos um quadro primaveril, esmaltado de cores e envolto nos sons de Vivaldi de uma festa folclórica. Deus passa no céu, qual «cavaleiro das nuvens e das águas derramadas pelas estrelas», como diziam os indígenas cananeus, para os quais a divindade mergulhava na terra confundindo-se com ela, fazendo-a germinar com o seu beijo e o seu sémen. Eis, pelo contrário, o idílio bíblico:
«Cuidaste da terra e tornaste-a fértil, cumulando-a de riquezas. Enches, a transbordar, os rios caudalosos e fazes brotar o trigo; assim preparas a terra. Regas os seus sulcos e aplanas as leivas; amoleces a terra com chuvas abundantes e abençoas as suas sementeiras. Coroas o ano com os teus benefícios; por onde passas, brota a abundância. Vicejam as pastagens do deserto, as colinas vestem-se de festa. Os campos cobrem-se de rebanhos e os vales enchem-se de trigais. Tudo aclama e grita de alegria» (Sl 65,10-14).
Deus dá uma veste digna de Botticelli à terra primaveril: coroa de flores, cinturão, vestido verde salpicado de branco, manto dourado. O elemento mais sugestivo, porém, é aquela espécie de alegre procissão popular final, quando todas as criaturas se encaminham para o Criador, cantando, dançando e louvando-o. Há, portanto, um cântico de resposta da criação, que louva o Criador.
 
É a isso que Teilhard de Chardin (1881-1955), o famoso jesuíta cientista, chamará a "Missa cósmica": encontrando-se no deserto chinês sem pão nem vinho, celebrará uma liturgia eucarística espiritual e ideal, em que, mediante a oração e a contemplação da natureza, a própria matéria era consagrada e louvava a Deus, revelando-o e adorando-o. «Tudo o que respira louve o Senhor», reza o último versículo do Saltério (Sl 150,6). Mais uma vez, uma música de fundo permeia o ser. E a partitura é mística.
É por isso que a terra, na Bíblia, se transformará num sinal, em particular aquele pequeno espaço chamado "’erez", a «terra» por excelência, ou seja, a terra prometida a Israel (leia-se Dt 8,7-10). Jeremias chegará ao ponto de a chamar como se fosse uma pessoa: «"’erez, ’erez, ’erez"! Ouve a palavra do Senhor!» (Jr 22,29). E, lentamente, ela se converterá em imagem da terra perfeita, re-criada por Deus para os justos: «Os que o Senhor abençoar possuirão a "’erez" [...]. Os justos possuirão a "’erez"e nela viverão para sempre» (Sl 37,22.29); são palavras que Jesus retomará no seu Sermão da Montanha: «Bem-aventurados os mansos, porque herdarão a terra!» (Mt 5,5). Trata-se de uma terra onde a justiça triunfará, uma terra «cheia do conhecimento do Senhor, tal como as águas que cobrem a vastidão do mar» (Is 11,9).
É nesse sentido, portanto, que «o canteiro que tão nos faz ferozes» – como dizia Dante no "Paraíso" (XXII, 151) – se torna aos olhos do crente uma espécie de pergaminho em que está escrita uma mensagem que fala do Criador. Ou antes, na terra há uma presença divina permanente e ubíqua, que assim se expressava na "Canção Tu", texto poético da tradição dos Hassidim, corrente mística hebraica que floresceu na Europa central a partir do século VIII: «Onde quer que eu vá, Tu; onde quer que eu me detenha, Tu; só Tu, ainda Tu, sempre Tu! Céu, Tu; Terra, Tu. Para onde quer que eu me vire, para onde quer que olhe, Tu; só Tu, ainda Tu, sempre Tu!».
 
Card. Gianfranco Ravasi
Presidente do Pontifício Conselho da Cultura
In "Onde estás, Senhor?", ed. Paulinas
Publicado em 01.09.2015
 
Fonte: Pastoral de Cultura

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