«Céu, Tu; Terra, Tu»
Os católicos celebram hoje, 1 de setembro de 2015, o primeiro Dia Mundial de Oração pelo Cuidado da Criação, instituído pelo papa Francisco. A data será assinalada anualmente, como já o faz a Igreja ortodoxa.
«Sabes quem determinou as suas dimensões [da terra]? Quem estendeu a régua sobre ela? Sabes em que repousam as suas bases, ou quem colocou nela a pedra angular?» Estas interrogações prementes que Deus, o Criador, lança a Job no fim do longo tormento do «homem de Uz» (Job 38,5-6), fazem intuir a estrutura da cosmologia bíblica. O universo é concebido como uma imensa plataforma circular ou quadrada (fala-se muitas vezes das suas «quatro extremidades»), apoiada sobre poderosas colunas que a sustentam sobre a extensão do oceano, símbolo das águas caóticas e do nada. Eleva-se sobre ela a grandiosa cúpula do céu.
Para reconstruir a imagem bíblica da terra há que regressar à página inicial da Escritura, ao livro do Génesis, e, por uma questão de exatidão, ao relato da criação. Assim como os continentes aparecem graças à retração dos oceanos, também a criação aflora graças à retração de Deus, que causa e domina a realidade da criação, mas sem a absorver. Esta imagem de Hölderlin permite-nos ilustrar a visão bíblica da finitude da terra, do seu limite, do facto de ela estar suspensa sobre o oceano do nada.
Tem sido muitas vezes observado que o nada é inexprimível numa cultura realístico-simbólica como a semita, que ignora abstrações, conceitos formais e essenciais. Contudo, na página do Génesis atrás referida, envereda-se pela expressão da "creatio ex nihilo", como dirá, literalmente, a linguagem teológica medieval. Esta é, obviamente, simbólica. Com efeito, no segundo versículo do Génesis, lemos: «A terra era "tohu wabohu" e as trevas cobriam o abismo.»
Esse "tohu wabohu" é um termo onomatopaico que, também na sua fonética grosseira e rude, evoca uma superfície desértica, desolada e esquálida, indicando por isso ausência de vida, silêncio, morte, ou seja, precisamente o contrário daquilo que Deus fará imediatamente florescer. Há, depois, as «trevas», negação da luz; "’or", «a luz», será, com efeito, a primeira entidade a aparecer.
Por fim há o «abismo», em hebraico "tehôm" (faz referência a Tiamat, a divindade mesopotâmica do caos), que se escancara sob a terra, concebida precisamente – segundo o que acabámos de dizer – como uma plataforma sustentada por colunas que se elevam sobre o abismo vertiginoso, onde se acumulam as águas caóticas (outro símbolo negativo).
Deserto, trevas e abismo representam a tríade obscura do nada, que é vencida pela palavra divina criadora. A criação, que não é infinita porque assim se identificaria com Deus, mantém-se suspensa sobre as crateras do nada, de onde saiu mediante o «dizer» de Deus e o seu "bara’", que é aquele verbo colocado no «título» do Génesis («No princípio Deus criou ["bara’"] o céu e a terra»), e que remete simbolicamente para o trabalho do lenhador, daquele que corta os troncos, e do pedreiro, que também tem um equivalente no verbo fenício, língua afim ao hebraico. Ora, este equilíbrio instável entre ser e nada, sobre o qual a terra se mantém, tem a sua representação simbólica na linha de rebentação das ondas, no litoral, onde parece estender a fronteira móvel entre "jam", o «mar», e "’erez", a «terra».
Nos mitos cananeus, próprios da população indígena da Palestina, Jamm era uma divindade negativa que se opunha a Baal, o deus da vida e do ser. A Sabedoria divina, no hino do capítulo 8 dos Provérbios, assiste o Criador no ato delicado de suspender a terra sobre o mar caótico, sinal do nada: «[Eu estava a seu lado] quando fixava ao mar os seus limites, para que as águas não ultrapassassem a sua orla» (Pr 8,29). O terror do nada, que precisamente na linha de rebentação da costa marinha tenta alcançar o esplendor da criação terrestre, só é superado porque Deus se ergue de dedo apontado contra o adversário aparentemente físico, mas na realidade metafísico. Representado como uma criança rebelde envolta em faixas, ou como um prisioneiro perigoso aferrolhado num cárcere de segurança máxima, o mar, embora continuando a agitar-se com as suas ondas e os seus monstros, é submetido ao imperativo divino, como ainda hoje se lê no livro de Job: «Quem pôs diques ao mar, quando, impetuoso, saía do seio materno, quando Eu lhe dava por manto as nuvens, e o enfaixava com névoas tenebrosas?
Encerrei-o dentro dos limites que tracei, e pus-lhe portas e ferrolhos, dizendo: “Chegarás até aqui; não mais além; aqui se quebrará o orgulho das tuas ondas!”» (Job 38,8-11).
A força agressiva do mar-nada-infernos será admiravelmente caracterizada por Job nos dois monstros marinhos: Behemoth, a Besta por excelência, descrita (em Job 40,15-24) como um colossal hipopótamo, e Leviatã, o réptil descrito (em Job 40,25-41,26) como um poderoso crocodilo, transformado, na famosa citação do escritor americano Herman Melville (1819-1891), no implacável cetáceo "Moby Dick". A representação do Leviatã é, em Job, uma celebração do senhorio supremo do Criador, que até se pode dar ao luxo de brincar com ele como um passarinho, atando-o para divertimento das crianças (cf. Job 40,29). Também é por isso que, segundo uma tradição judaica, o Leviatã será morto e preparado para o banquete messiânico dos justos. É por isso que a humanidade, segundo o salmista, se pode aproximar sem medo do «mar grande e vasto, onde se agitam inúmeros seres, animais grandes e pequenos». E continua: «Nele passam os navios e ainda o Leviatã, monstro que Tu criaste, para ali brincar» (Sl 104,25-26). A extrema surpresa será na re-criação apocalíptica, quando João, contemplando o «novo céu» e a «nova terra», se aperceberá de que «o mar já não existia» (Ap 21,1). A instabilidade e o limite da terra serão então resolvidos mediante a eliminação da realidade negativa em termos simbólicos, o mar, precisamente.
Mas voltemos a contemplar a terra saída das mãos do Criador, segundo a narração septenária do citado capítulo 1 do Génesis: vegetação, mundo animal e humanidade povoam o horizonte terrestre. Nós, porém, gostaríamos de referir ainda o citado primeiro discurso de Deus nos capítulos 38 e 39 de Job, um fresco estupendo em dezasseis estrofes – segundo a mística dos números, os quatro pontos cardeais de uma topografia perfeita – que faz fluir diante do leitor a irreprimível fantasia do Criador, cujo "’ezah", cujo «plano», escapa à catalogação racional do homem, revelando uma racionalidade superior em que tudo tem unidade e sentido.
Este discurso divino é um momento capital na economia do poema teológico de Job. A plataforma terrestre suspensa sobre o abismo, o mar, a aurora, a luz e as trevas, a neve e o granizo, a chuva, o orvalho e o gelo, os astros e a mecânica celeste, os furacões, os animais selvagens, a genética da cabra montês, a liberdade instintiva do onagro ou asno selvagem, a força do búfalo, a rapidez da avestruz, a beleza do cavalo, o sabor da presa para o faisão: Estamos na presença de uma espécie de filme transbordante de maravilhas, que partem da arquitetura cósmica para chegar ao misterioso afastamento das cabras monteses no momento do parto, incluindo a elegância ousada do cavalo e a estupidez desajeitada da avestruz. São estas as obras da decoração terrestre que o Criador espalhou sobre a superfície terrestre.
Desconcertante mistura de ordem e extravagância, a terra atormenta e exalta o homem. Numa página de luto, Jeremias descreve uma terrível seca, flagelo endémico da Palestina, como também o são os gafanhotos devoradores cantados por outro profeta, Joel (cf. Jl 2,3-9):
«Os seus chefes enviaram os servos à procura de água. Estes foram às cisternas, porém, não encontraram água, e voltaram com os recipientes vazios; cheios de vergonha, cobrem a cabeça. Como o solo está ressequido e não cai chuva sobre a terra, os agricultores desesperam e cobrem o rosto de tristeza. Até a gazela, depois de dar à luz no campo, abandona a sua cria, porque não há verdura. Os asnos selvagens param nos montes e aspiram o ar, como chacais. Os seus olhos perderam o brilho, por falta de erva» (Jr 14,3-6).
Vem, contudo, o inverno, e Deus «espalha a neve como aves que pousam; ela cai como gafanhotos que se abatem; os olhos admiram a beleza da sua brancura e o coração maravilha-se de a ver cair. Deus derrama sobre a terra a geada como sal; quando se congela, torna-se como pontas de espinhos» (Sir 43,18-19).
Vem depois a primavera, com as suas chuvas fecundas. Cabe ao Salmo 65 oferecer-nos um quadro primaveril, esmaltado de cores e envolto nos sons de Vivaldi de uma festa folclórica. Deus passa no céu, qual «cavaleiro das nuvens e das águas derramadas pelas estrelas», como diziam os indígenas cananeus, para os quais a divindade mergulhava na terra confundindo-se com ela, fazendo-a germinar com o seu beijo e o seu sémen. Eis, pelo contrário, o idílio bíblico:
«Cuidaste da terra e tornaste-a fértil, cumulando-a de riquezas. Enches, a transbordar, os rios caudalosos e fazes brotar o trigo; assim preparas a terra. Regas os seus sulcos e aplanas as leivas; amoleces a terra com chuvas abundantes e abençoas as suas sementeiras. Coroas o ano com os teus benefícios; por onde passas, brota a abundância. Vicejam as pastagens do deserto, as colinas vestem-se de festa. Os campos cobrem-se de rebanhos e os vales enchem-se de trigais. Tudo aclama e grita de alegria» (Sl 65,10-14).
Deus dá uma veste digna de Botticelli à terra primaveril: coroa de flores, cinturão, vestido verde salpicado de branco, manto dourado. O elemento mais sugestivo, porém, é aquela espécie de alegre procissão popular final, quando todas as criaturas se encaminham para o Criador, cantando, dançando e louvando-o. Há, portanto, um cântico de resposta da criação, que louva o Criador.
É a isso que Teilhard de Chardin (1881-1955), o famoso jesuíta cientista, chamará a "Missa cósmica": encontrando-se no deserto chinês sem pão nem vinho, celebrará uma liturgia eucarística espiritual e ideal, em que, mediante a oração e a contemplação da natureza, a própria matéria era consagrada e louvava a Deus, revelando-o e adorando-o. «Tudo o que respira louve o Senhor», reza o último versículo do Saltério (Sl 150,6). Mais uma vez, uma música de fundo permeia o ser. E a partitura é mística.
É por isso que a terra, na Bíblia, se transformará num sinal, em particular aquele pequeno espaço chamado "’erez", a «terra» por excelência, ou seja, a terra prometida a Israel (leia-se Dt 8,7-10). Jeremias chegará ao ponto de a chamar como se fosse uma pessoa: «"’erez, ’erez, ’erez"! Ouve a palavra do Senhor!» (Jr 22,29). E, lentamente, ela se converterá em imagem da terra perfeita, re-criada por Deus para os justos: «Os que o Senhor abençoar possuirão a "’erez" [...]. Os justos possuirão a "’erez"e nela viverão para sempre» (Sl 37,22.29); são palavras que Jesus retomará no seu Sermão da Montanha: «Bem-aventurados os mansos, porque herdarão a terra!» (Mt 5,5). Trata-se de uma terra onde a justiça triunfará, uma terra «cheia do conhecimento do Senhor, tal como as águas que cobrem a vastidão do mar» (Is 11,9).
É nesse sentido, portanto, que «o canteiro que tão nos faz ferozes» – como dizia Dante no "Paraíso" (XXII, 151) – se torna aos olhos do crente uma espécie de pergaminho em que está escrita uma mensagem que fala do Criador. Ou antes, na terra há uma presença divina permanente e ubíqua, que assim se expressava na "Canção Tu", texto poético da tradição dos Hassidim, corrente mística hebraica que floresceu na Europa central a partir do século VIII: «Onde quer que eu vá, Tu; onde quer que eu me detenha, Tu; só Tu, ainda Tu, sempre Tu! Céu, Tu; Terra, Tu. Para onde quer que eu me vire, para onde quer que olhe, Tu; só Tu, ainda Tu, sempre Tu!».
Card. Gianfranco Ravasi
Presidente do Pontifício Conselho da Cultura
In "Onde estás, Senhor?", ed. Paulinas
Publicado em 01.09.2015
Presidente do Pontifício Conselho da Cultura
In "Onde estás, Senhor?", ed. Paulinas
Publicado em 01.09.2015
Fonte: Pastoral de Cultura
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