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domingo, 29 de março de 2015

JUNTOS PARA SEMPRE, NAS ALEGRIAS E NAS TRISTEZAS

Juntos para sempre, na luz e na escuridão

por Nicole C. KearHojeComentar
Juntos para sempre, na luz e na escuridão
A fé dele alimentou a minha. Teríamos outra criança e seria difícil e espetacular, e faríamos aquilo juntos. Juntos nos momentos gloriosos e nos cansativos. A nossa história, fosse ela o que fosse - poética, prosaica e tudo o resto entre as duas -, era nossa para a vivermos a dois.
Não há nenhuma boa maneira de dizer a um novo homem na nossa vida que estamos a ficar cegas. Entre as más opções eu escolhi a menos má: dei a notícia depois do sexo e embrulhei-a o melhor possível.
Aos 22 anos, David era um romancista em início de carreira e eu sabia que se emoldurasse a minha situação como sendo poética ele acharia irresistível, pelo menos ao nível da narrativa. Assim, deitada a seu lado no escuro, contei-lhe a história como se fosse um romance gótico.
Comecei por lhe contar como, três anos antes, aos 19, percebi que não conseguia ver as estrelas à noite. Parecia ser um pormenor relativamente inofensivo até se ter revelado como o primeiro sintoma de uma doença degenerativa incurável da retina. O médico disse-me que eu iria perder lentamente a visão durante os próximos dez a 15 anos - primeiro a visão noturna e a visão periférica e, mais tarde, também a visão central.
Terminei o relato com uma nota alta: perder a visão, expliquei, estava a ensinar-me a ver realmente. Iria cegar com estrondo e não com lamúrias, vendo e fazendo mais na próxima década do que a maioria das pessoas faz numa vida inteira.
Tudo verdade, mas apenas uma parte da história. A parte bonita.
O nosso romance era ainda recente e eu estava nervosa com a reação dele à minha revelação. A sua resposta, porém, foi tão grandiosa e poética como a própria história.
Na vez seguinte em que nos encontrámos, ele tinha o meu nome tatuado no braço. Seis letras minúsculas manchavam-lhe a pele, indelevelmente. Enquanto eu admirava a tatuagem, ele disse-me que eu tinha iluminado a sua escuridão e que ele iluminaria a minha. Viesse o que viesse, disse, não importaria, iríamos enfrentá-lo juntos. Ele estaria presente.
Conheci David durante o nosso último semestre na faculdade, onde ambos estudávamos inglês e teatro. Gostei dele porque era inteligente, mas não pretensioso, engraçado, mas nunca mesquinho. Gostei da sua sinceridade desconcertante, tão diferente da minha própria dependência da sedução e dos subterfúgios. Havia solidez nele e isso fez-me sentir segura pela primeira vez desde o meu diagnóstico.
Onde David era denso, eu era leve. Onde ele era contido, eu era descontraída. Eu fazia-o rir e fazer coisas que o assustavam, como mudar-se para Los Angeles.
Ele era um rapaz de uma cidade pequena do Sul que sempre sonhou viver na Califórnia, mas que nunca estava pronto para dar o mergulho - até eu o ter dado com ele.
Em Los Angeles, David ajudava-me com as minhas audições e eu corrigia os seus manuscritos.
Nos fins de semana baixávamos o tejadilho do seu velho descapotável e fazíamos a Pacific Coast Highway com a música bem alta. Achávamos que as colinas douradas pareciam as costas de leões adormecidos. David guiava durante horas com uma só mão, porque a outra estava entrelaçada na minha.
A nossa vida a dois era um romance grandioso e a minha cegueira invasora era mais uma bênção do que uma maldição, porque nos obrigava a viver com urgência. A cegueira era poética, porque não tinha acontecido ainda.
Em teoria, a cegueira é épica, nobre, simples. Na realidade, a história é completamente diferente.
Na realidade, é cansativa, debilitante, confusa. Ela muda-nos de muitas e surpreendentes maneiras, algumas positivas e outras não. É muito como a realidade de se estar casado.
Dez anos depois de David ter tatuado o meu nome no braço, a nossa história parecia-se mais com um enredo de Raymond Carver do que com uma história de amor gótica: condenada da forma mais vulgar. Passada uma década, no dia em que fiz 33 anos, dei comigo a chorar sozinha sentada na escada exterior de uma casa em Brooklyn.
Tinha deixado de atuar porque já não conseguia orientar-me nos palcos e nos cenários escuros. Tínhamos regressado a Brooklyn, a minha terra natal, porque conduzir tinha-se tornado impossível para mim. Tínhamo-nos casado e tido um filho, um bebé comprido e gracioso, com uns olhos enormes.
Fiquei felicíssima por conseguir discernir estes pormenores e igualmente exultante por ver as bochechas redondas e a curva dos lábios da minha filha recém-nascida, dois anos mais tarde. Assisti à cor dos olhos deles a fixar-se no azul e ver essas mudanças enchia-me de gratidão. Mas deixava-me igualmente cheia de medo.
O ano do nascimento da nossa filha marcou o aniversário dos dez anos do meu diagnóstico e, nessa altura, já tinha perdido a visão suficiente para ser considerada legalmente cega. A minha amplitude de visão tinha fechado como a abertura de uma máquina fotográfica, deixando-me como um caso extremo de visão em túnel.
Colidia constantemente com as pessoas e as coisas: equipamentos dos parques infantis, bocas-de-incêndio, portas de armários deixadas abertas. Desenvolvi cataratas, o que tornou difícil para mim preencher formulários no consultório do pediatra ou, na verdade, ler fosse o que fosse.
Tinha estado tão ocupada a tirar o maior partido possível da minha visão que não me tinha preparado para a perder. Nunca falei da minha doença, nem mesmo com as poucas pessoas que tinham conhecimento do assunto.
Esconder a minha perda de visão isolava-me e era assustador. Eu tinha medo de deixar cair o carrinho de bebé num buraco ou de perder os meus filhos no parque infantil, sentia-me receosa de um futuro em que já não conseguiria ver os seus rostos.
A minha confiança tinha voado também. Desisti de usar saltos altos porque caía com eles, desisti de pôr eyeliner porque não conseguia fazer um risco direito, desisti de ler porque não era capaz de decifrar as palavras. Sentia-me como se estivesse não só a perder a visão, mas também partes essenciais do que me fazia ser eu.
Porque não tinha outros recursos de apoio preparados, o ónus caiu sobre David, que se tornou o meu guia visual sub-reptício. Tudo isso, além das tensões típicas inerentes a criar dois filhos pequenos, era desgastante para um casamento.
No dia dos meus 33 anos, David e eu arranjámos uma babysitter e planeámos um jantar fora com amigos. Passei uma hora a maquilhar-me frente a um espelho de aumentar e acabei a ouvir David comentar que estava um pouco, hum, desigual. Ele tinha-me oferecido um livro de Anne Lamott que eu não conseguiria ler.
No caminho para o restaurante reabrimos o debate sobre se deveríamos ou não ter um terceiro filho.
Eu queria, mas estava apavorada com a ideia de que não seria capaz de cuidar do bebé com a minha visão a falhar. David disse que faria o que eu quisesse, mas que não via como seria possível fazermos a coisa funcionar. Os nossos recursos (dinheiro, tempo e, sim, a visão) já eram tão limitados.
A meio caminho do restaurante a nossa conversa tornou-se uma discussão, que terminou com David a ir-se embora e a dizer-me para ir à festa sem ele. Estaquei onde estava, deixei-me cair nos degraus da casa mais próxima e solucei.
Não estava indefesa. Eu conseguiria encontrar o caminho para casa. Mas não podia ir à festa sem ele. Não via suficientemente bem para conseguir encontrar os meus amigos ou ler a ementa. Eu precisava de David e ele ressentia-se disso e eu ressentia-me com o seu ressentimento.
Lembrei-me de como lhe dissera que iria cegar com um estrondo e não com lamúrias, e como ele havia prometido que ficaríamos juntos para sempre, na luz e na escuridão. Parecia que estávamos os dois enganados.
Alguns minutos mais tarde, as grandes botas castanhas de David, aquelas em que eu sempre tropeçava quando ele as deixava perto da porta, entraram no meu campo de visão.
"Não me podes deixar", disse--lhe, "eu preciso de ti".
"Eu sei", respondeu.
"Odeio isso."
"Também eu."
Então, ele pegou na minha mão e disse que iríamos descobrir como fazer aquilo funcionar.
Ainda estamos a tentar descobrir. O problema de perdermos lentamente alguma coisa indispensável é que estamos constantemente a ajustar-nos à perda. No momento em que encontramos um equilíbrio confortável, algo muda e é preciso recalibrar.
Pouco tempo depois do meu aniversário entrei em contacto com a Comissão para os Cegos do Estado de Nova Iorque, o que me levou a aprender a usar uma bengala de mobilidade e tecnologia de adaptabilidade. Arranjei uma lupa e deixei de precisar de David para medir o antipirético das crianças ou para ajustar o termóstato. Li o livro de Anne Lamott, facilmente ampliado no e-reader que David me deu no Natal.
Recuperei muitas capacidades que havia perdido e comecei a aprender a aceitar aquilo a que tinha de abdicar.
Um ano mais tarde, David levou-me a jantar fora e disse que tinha algo para me dizer. O seu rosto aparecia-me difuso à luz das velas, mas conseguia ver a boca dele a esboçar um sorriso.
"Acho que devíamos ter outro bebé", disse.
Fui apanhada de surpresa.
"Mas e depois como..."
David pegou na minha mão e interrompeu-me:
"Nós vamos descobrir como."
Ele falou com a mesma certeza que o fez tatuar o meu nome no braço há muito tempo. A fé dele alimentou a minha. Teríamos outra criança e seria difícil e espetacular, e iríamos fazer aquilo juntos.
Juntos, nos momentos de romance gótico e nos momentos de Raymond Carver. Juntos nos momentos gloriosos e nos cansativos. A nossa história, fosse ela o que fosse - poética, prosaica e tudo o resto entre as duas -, era nossa para a vivermos a dois.
Nicole C. Kear, que vive em Brooklyn, é autora do livro de memórias Now I See You.
*É de amor que se fala nesta coluna, a mais lida do the New York Times. Histórias verdadeiras, contadas pelos leitores. Leia-as no DN aos domingos
Exclusivo DN/The New York Times

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