Nenhum libertador se faz rei
DEUS POR EXCELÊNCIA DO CONSUMISMO MODERNO! |
Para aprender a renascer é preciso reaprender a morrer, o que está muito esquecido. A civilização do consumo é, antes de qualquer outra coisa, uma tentativa gigantesca para exorcizar a morte, o limite, o envelhecimento; uma enorme e sofisticadíssima indústria de entretimento perpétuo que não deve deixar tempo e espaço para pensar que, um dia, o grande jogo do consumo há de acabar, o carrocel há de entrar na sua última volta.
OS ÍDOLOS DA NOSSA SOCIEDADE |
Assim se apaga do horizonte do capitalismo o último dia; celebram-se cultos aos seus ídolos que se nutrem dos produtos de mercado. Os ídolos prometem exorcismos da morte e da dor errados e ineficazes. O Génesis e o Êxodo são sublimes e eternos cânticos à vida, a toda a vida; por isso são também profundos ensinamentos sobre a morte. Abraão, Isaac, Jacob e José ensinam-nos a viver e ensinam-nos a morrer «saciados de dias», com «bonita cabeleira branca». A morte de Moisés, misteriosa e totalmente diversa, é o ponto culminante da sua vida, o sentido último das palavras que tinha escutado da "voz", a manifestação plena da vocação sua e da de quem quer responder a um apelo de libertação para uma terra prometida.
Com a construção da morada, que passou a ser possível graças às mãos e à mente abençoadas dos trabalhadores, encerra-se o livro do Êxodo.
Moisés, o libertador da escravidão, aquele que revelou ao povo o nome de Elohim e a sua Lei, o único homem que falava com Deus "diretamente" (Números 12,8), morre fora da terra prometida. O Senhor mostra-lha de longe, mas não poderá entrar nela: «Para o outro lado do Jordão tu não passarás» (Deuteronómio 3, 28).
Os patriarcas do Génesis tinham morrido de modo diverso, circundados por mulher, filhos, filhas e netos, as muitas "estrelas" prometidas no dia do chamamento. Morreram em casa, muitos deles foram sepultados na mesma gruta de Macpela (Génesis, 23), o único pedaço de terra prometida que Abraão possuiu. Moisés morreu sozinho, sem ninguém a acompanhá-lo na última viagem, sem a consolação dos afetos. Morreu como tinha vivido, dentro daquele diálogo solitário e contínuo com a voz que o tinha chamado da sarça quando, sozinho, pastoreava o rebanho do sogro Jetro no Horeb; e com a qual mais tarde, naquele mesmo monte, tinha sozinho falado na tenda da reunião.
Não sabemos se naquela última viagem, no monte Nebo, a voz continuou a falar-lhe, se o acompanhou ou se se retirou, como aconteceu a muitos profetas que morreram no silêncio da voz. Podemos imaginá-lo na companhia do seu Deus, tendo presentes as expressões do livro do Êxodo que nos sugerem um relacionamento muito íntimo entre Moisés e o Senhor: «amigo de Deus» (cf. Êxodo 33,11), «tenho confiança em ti e és do meu agrado» (33,17). Para a tradição midrash, enquanto Moisés exala o último suspiro o Senhor beija-o na boca, continuando até ao fim o diálogo "boca a boca" misterioso e único.
Nesta morte misteriosa e dolorosa revela-se em toda a sua força e plenitude a natureza da vocação de Moisés, mas também a de todos os fundadores de comunidades e de movimentos carismásticos, de grandes obras espirituais. Todos os profetas morrem fora da terra prometida, porque a promessa não era para eles mas para o "povo" libertado.
Moisés é o libertador da escravidão e o guia na travessia do deserto; não é o soberano do novo reino de Canaã. Os profetas são os companheiros no êxodo, na travessia do deserto; habitam em tenda móvel de arameu errante. A sua tarefa é tirar-nos da escravidão, proteger-nos dos ídolos, levar-nos à reconciliação e a recomeçar, depois de traições coletivas, conduzir-nos até ao limiar da nova terra, apontá-la aos nossos olhos. Sem ir além. A terra deles é a que está entre os campos de trabalho forçado e Canaã, entre o Nilo e o Jordão. São os homens e as mulheres do atravessamento noturno do rio da libertação, da passagem, do limiar.
Para não se tornar um ídolo e tomar o lugar da voz – o grande risco de qualquer profeta – ele deve "morrer2, deve pôr-se de lado, apagar-se e ser apagado num momento preciso. É o último grande decisivo ato que garante definitivamente que as palavras escutadas e transmitidas ao povo não eram da sua voz, que falava no lugar de outro ("pro-phetés"), que as suas palavras eram grandes porque não eram suas.
Todos os fundadores morrem antes do Jordão; e se o ultrapassarem tornando-se reis da nova terra prometida, significa que ou aquela terra não é a da promessa, ou eles são falsos profetas. A terra onde se chega é a da promessa se o profeta não chegar lá. Não por estranha punição de Deus (Moisés sempre foi justo), mas pela natureza íntima da vocação. Neste aspeto Moisés vai mais longe que Noé, o qual subiu também para a arca que tinha construído. Moisés constrói uma arca que não é para ele; por isso é o profeta maior de todos: «Nunca mais voltou a aparecer no povo de Israel um profeta como Moisés, com quem o Senhor tratava pessoalmente» (Deuteronómio 34,10).
Na morte de Moisés encontra-se também um paradigma da fé bíblica. Deus não se vê, não pode ser representado. É uma voz que chega até nós através da voz dos profetas. No entanto, com o tempo, a fronteira entre a voz que fala ao profeta e a voz do profeta torna-se cada vez mais ténue, mais subtil, quase desaparece; e para o povo acabam por tornar-se uma só voz. O profeta distingue-se do falso profeta porque certo dia sabe pôr-se de lado, desaparecer, apagar-se, dizendo: "eu não sou Elohim para vós". Se Moisés foi o maior de todos, então a fé bíblica não é posse. A fé é saber habitar a "margem" entre a promessa e o fim do deserto, saber manter-se no vau sem deixar-se arrastar pela corrente do rio. É esta margem que permite que a fé se não torne idolatria, adoração de ídolos, de outras pessoas, de si mesmos.
Na morte de Moisés, por fim, encontramos ainda uma maravilhosa lição sobre a condição humana. Não existe terra prometida que possa ser alcançada: a vida é caminho, peregrinação, êxodo. Chegará o momento – quase sempre antes da última volta do carrocel – no qual nos damos conta de que as promessas da vida não se realizaram. Mesmo quando a vida foi estupenda, mesmo quando vimos Deus "face a face", os silvados a arder, o maná descer do céu, a nuvem poisar sobre a nossa tenda, sentimos que a promessa era outra, a que está além do Jordão.
A história e a morte de Moisés, no entanto, dizem-nos que o afastamento entre a terra prometida e a terra aonde nós chegámos não é fracasso: é simplesmente a vida, é a nossa boa condição humana. O vau do rio que não atravessámos diz a todos, incluindo Israel, que a verdadeira promessa não é uma terra firme; é caminho nómada através de um deserto, atrás de uma voz. Para no final descobrir que a terra prometida era precisamente o deserto que se estava a atravessar; foi lá que se desenrolou a nossa história de amor (Oseias). Foi lá que vimos descer a coluna de fogo, foi lá que escutámos a voz e recebemos as suas palavras, foi lá que libertámos escravos e os protegemos dos ídolos; foi lá que vimos a terra prometida para o nosso povo, foi lá que falámos com Deus "diretamente".
A conclusão da vida de Moisés repete-nos, uma vez mais e definitivamente, a palavra que nos acompanhou durante toda a meditação do livro do Êxodo: gratuidade. A gratuidade maior que o profeta vive é o desprendimento da terra prometida; pode e deve vê-la sem a ela chegar. Porque o preço da gratuidade do profeta é manter vivo para todos o afastamento entre cada terra e cada promessa; é nesse afastamento que se acende a vida, é lá que se alimentam os desejos e os sonhos grandes (o grande engano do nosso tempo é extinguir com produtos do mercado os desejos das crianças).
É este afastamento que nos recorda que toda a terra prometida é para a "nossa descendência", não é para nós. O mundo viverá enquanto continuarmos a libertar alguém da escravidão, enquanto caminharmos para uma terra prometida a oferecer aos filhos e aos netos, aos jovens de hoje e de amanhã. A felicidade mais importante não é a nossa, mas sim a dos filhos de todos.
Luigino Bruni In "Avvenire" Trad.: José Alberto BF, António Bacelar Publicado em 03.03.2015
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