sobre o filme “Tubarão
O blockbuster que deixou meio mundo com medo da água comemora quatro décadas este ano. Mergulhámos nas memórias atribuladas da rodagem e descobrimos um predador com nome de gente.
Autor- Fonte: Observador
1. Tubarão comemora em breve 40 anos, mas a verdade é que podia nem ter chegado a estrear. A rodagem do filme arrancou em maio de 1974 e foi um verdadeiro pesadelo onde nem a meteorologia ajudou. Spielberg, então com 27 anos, foi muito criticado por ter escolhido rodar grande parte das cenas no Oceano Atlântico, com todas as contrariedades e imprevistos que o mar pode implicar, e não num lago ou num tanque em Hollywood. Apesar de todas as dores de cabeça, nunca se arrependeu da escolha. “A água de um lago ou de um tanque não tem a mesma textura e até violência que o oceano, e esta precisava de ser uma história convincente sobre um tubarão branco gigante, ou ninguém acreditaria nela”, diz o realizador no documentário Jaws, the Inside Story, realizado por ocasião dos 35 anos do filme.
2. Chamar aos problemas de produção do filme uma dor de cabeça é um grande eufemismo. Como diz o realizador no mesmo documentário, Tubarão foi a melhor e a pior experiência da sua vida. Para além de ter de lidar com os enjoos da equipa em alto mar e de ter de esperar que os barcos à vela saíssem do horizonte ao mesmo tempo que lutava contra as correntes, a rodagem enfrentou o grande problema de ter um tubarão mecânico construído de propósito para a história sempre a avariar. Houve dias em que só se aproveitaram segundos de filmagens, o que fez com que a equipa batizasse o filme de Flaws (falhas), em vez de Jaws (mandíbulas), e com que Spielberg apelidasse a área técnica de “departamento de defeitos especiais”.
Os cálculos iniciais também foram, literalmente, por água abaixo, e o orçamento de cerca de quatro milhões de dólares, assim como o calendário que apontava para 55 dias de filmagens, triplicaram. Ironia das ironias, ainda bem que foi assim. Com os atrasos, não só o guião pode ser aperfeiçoado, como Spielberg se viu obrigado a usar mais cenas em que sugere a presença do tubarão sem o mostrar, aumentando assim o suspense do filme. Como afirma o livro dedicado ao realizador na Coleção Grandes Realizadores da Cahiers du Cinéma, essa é a força da película: “Tubarão é um modelo de precisão e eficácia, um jogo perverso com as fobias universais associadas ao risco que se esconde debaixo de água.” O próprio realizador haveria de dizer, em várias entrevistas: “O facto de o tubarão não funcionar fez com que Jaws passasse de um filme de terror japonês de sábado à tarde para um thriller à Hitchcock. É o que não vemos que é realmente assustador.”
3. Antes de ver o resultado final, o realizador estava de tal forma receoso do descontentamento da sua equipa, presa numa ilha durante mais de cinco meses, que nem esteve presente na rodagem da última cena. Quando confrontado com a fuga, o realizador disse que acreditava que o iam atirar para dentro de água assim que ouvissem o último “corta”. Os motivos podem não ter sido os mais nobres, mas a verdade é que nasceu aí uma tradição: em muitos filmes depois desse, o realizador voltou a escolher não estar presente na cena final.
4. A ilha em questão era Martha’s Vineyard, uma localidade ao largo de Massachusetts que até ao verão de 1975 era tida como um refúgio idílico, local de eleição para o descanso da família Kennedy. Spielberg transformou-a num inferno à beira-mar quando a escolheu como cenário de Amity, a ilha fitícia do filme. Entre as razões para a escolha esteve a profundidade do mar e um fundo de areia que permitia rodar até 19 quilómetros ao largo, cena atrás de cena à tona da água, com um tubarão-robot pousado no fundo e sem uma tira de terra à vista. Com o seu porto marítimo e casinhas de madeira, Martha’s Vineyard era perfeita para recriar a localidade pacata da história. Só havia uma questão importante, exigida pelo realizador ao departamento de arte: evitar a cor vermelha tanto no cenário como no guarda-roupa, para o sangue resultante dos ataques do tubarão ter ainda mais impacto.
5. Na história, o terror é provocado por um tubarão branco com cerca de oito metros, mas na realidade havia não um mas três tubarões mecânicos, comandados através de um sistema de roldanas ligado a uma espécie de barco com tanta parafernália que era conhecido como garage sale (venda de garagem). Para além das barbatanas e de uma cabeça, havia uma metade direita do tubarão, oca do outro lado, uma metade esquerda, para cobrir a outra parte, e um tubarão completo. Todos foram desenvolvidos por uma equipa de efeitos especiais sob a supervisão de Bob Mattey, que já tinha experiência em monstros marinhos por ter criado a lula gigante do filme 20.000 Léguas Submarinas. Ameaçador para os espectadores, entre a equipa o predador era chamado pelo primeiro nome, como um animal de estimação. O nome era Bruce, por causa do advogado de Spielberg, Bruce Raimer, um tubarão dos tribunais que ainda hoje defende o realizador.
6. Sempre cheia de referências à história do cinema, a Pixar não deixou passar a deixa da alcunha quando inventou a personagem do tubarão vegetariano em À Procura de Nemo. Ele apresenta-se assim que aparece em frente a Dori e Marlin: “Hi, my name is Bruce.” Só não come peixinhos e pessoas, como o original.
7. Tubarão foi baseado num livro escrito por Peter Benchley com o mesmo nome. Richard Zanuck e David Brown, produtores na Universal Pictures, descobriram a história através da mulher de Brown, então editora de lifestyle na revista Cosmopolitan, e de uma crítica que terminava com a frase: “pode dar um bom filme”. Os produtores leram o livro e tiveram a mesma opinião, embora Brown tenha dito mais tarde, no documentário The Making of Jaws, incluído nos extras da edição especial em DVD, que se tivessem lido o livro uma segunda vez nunca teriam comprado os direitos do filme.
Sem tempo para parar e pensar como é que iriam executar certas cenas como a do tubarão gigante a saltar para cima do barco e a engolir um homem, os produtores avançaram, embora não na direção certa. Inicialmente, o filme era para ter Dick Richards ao leme, mas o realizador foi dispensado no momento em que disse que sempre tinha querido fazer um filme com uma baleia. Sem confundir espécies marinhas, Steven Spielberg foi o nome que surgiu a seguir. O norte-americano tinha acabado de rodar The Sugarland Express para Zanuck e Brown e tinha-se mostrado interessado na história ao ler uma cópia do livro pousada na secretária dos produtores.
8. Benchley escreveu o thriller depois de ler a notícia de um pescador, Frank Mundus, que apanhou um tubarão branco de duas toneladas junto às praias de Long Island, em 1964. O escritor acabou por estar bastante envolvido na rodagem: foi co-argumentista da versão cinematográfica e teve ainda uma pequena participação no filme como ator, no papel do repórter Alan Cray.
9. Uma das frases mais memoráveis do filme: “You’re gonna need a bigger boat” (vais precisar de um barco maior), dita pelo chefe de polícia Brody quando vê o tubarão pela primeira vez, foi na verdade improvisada por Roy Scheider, que interpreta a personagem, porque não estava no argumento. “A deixa passou a fazer parte da linguagem das pessoas quando enfrentam um problema invencível”, diz o ator no documentário The Making of Jaws.
10. Assim que estreou, dia 20 de junho de 1975 (25 de março de 77 em Portugal), Tubarão foi um “êxito fenomenal”, ao ponto de aparecer na capa da revista Time de 23 de Junho de 1975 com o título “Super Shark”. Aos 28 anos, Spielberg foi considerado o rei de Hollywood e fez com que nunca mais ninguém conseguisse nadar da mesma maneira. Quatro décadas depois, a forma como se vê o filme também mudou. Citando a Cahiers du Cinéma: “O que surpreende quando visionamos hoje Tubarão é que este filme que inventou o conceito de blockbuster não se parece em nada com uma superprodução, mas apenas um filme B muito bem montado.”
11. Apesar de todo o sucesso, o próprio Spielberg chamou ao filme “básico”. Em entrevista à revista Sight and Sound, em 1977, o realizador declarou: “Com Tubarão, optei por fazer um filme que atingisse o público de duas maneiras: primeiro o pânico, depois o suspense. Nunca ambicionei mais que isto. (…) Por vezes sacrifico completamente o estilo em prol do conteúdo. Para mim, Tubarão não tem estilo. Tubarão resume-se ao conteúdo, e à experiência. (…) Ao revê-lo, apercebi-me de que era o filme mais básico que alguma vez vi na minha vida. Resume-se ao movimento, ao suspense e ao medo.”
12. A música foi essencial para criar a atmosfera de suspense e John Williams ganhou um Óscar por isso. O compositor transformou a presença do tubarão num tema feito de tons baixos e graves repetidos, retirados “do fundo da orquestra” para “indicar o ataque irracional e instintivo do tubarão”. “Esta coisa ataca-nos e não a podemos combater sem a destruir devido ao seu impulso imparável”, disse o músico em Jaws, the Inside Story.
13. Não bastou quebrar a barreira da rodagem no mar, Spielberg quebrou também um tabu de Hollywood ao matar uma criança no grande ecrã. “A morte do rapazito do colchão amarelo regressará, qual memória indelével e culpada, aos filmes mais tardios do cineasta, disfarçada de pequeno robô afogado em I.A. — Inteligência Artificial, ou do filho de Tom Cruise em Relatório Minoritário”, escreve a Cahiers du Cinéma.
14. Segundo o mesmo livro da mítica revista francesa, a cena da morte da criança é uma homenagem a outro filme de terror, porque quando ela acontece o que vemos é a cara de Roy Scheider filmada através de um efeito especial retirado de A Mulher que Viveu Duas Vezes, de Hitchcock: “o famoso efeito de travelling para a frente, combinado com um zoom para trás, vertigem paralisante da impotência.”
15. Num mise en abyme de homenagear o filme que homenageou outros, Tubarão tem sido repescado por diversas vezes, quer em sequelas — nenhuma com a participação de Spielberg –, quer em versões 3D ou mesmo em paródias que transformam o cartaz noutro filme onde o destaque é dado a umas nada ameaçadoras patinhas.
Recentemente, o filme deu até origem a produções de moda. Na edição atualmente nas bancas (março de 2015), a Harper’s Bazaar aproveitou a deixa dos 40 anos do filme para pôr a sua estrela de capa, Rihanna, a nadar com tubarões. Numa das fotografias da produção, no entanto, a cantora deita-se na boca de uma maquete falsa. É uma recriação da famosa cena de Spielberg fotografada durante a rodagem, com o realizador a apanhar sol dentro da boca escancarada de Bruce.
Sem comentários:
Enviar um comentário