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quarta-feira, 4 de maio de 2016

OS SILÊNCIOS DE DEUS E COMO INTERPRETÁ-LOS?

ENTREVISTA

Tomás Halík: "Deus talvez esteja menos interessado em saber se acreditamos nele do que se o amamos"

03 Mai, 2016 - 07:00 • Filipe d'Avillez
Um dos mais respeitados teólogos do século XXI, o padre Tomás Halík vê a actual crise de fé como uma oportunidade de ir mais fundo na relação com o Deus dos evangelhos, que se esconde nas “chagas do nosso tempo”, nomeadamente entre os pobres.
Foto: www.vojtechvlk.com
Os grandes místicos do cristianismo, desde São João da Cruz a Madre Teresa de Calcutá, falam da “noite escura da alma”, um sentimento de abandono em que Deus se esconde e não se deixa sentir. Para o padre Tomás Halík, este estado é o que melhor descreve o ocidente actual, na ressaca de um século XX de terrível destruição e morte. Concluir pela inexistência de Deus é uma resposta demasiado fácil, há que procurá-Lo de novas formas, defende.
Nascido na República Checa durante a era comunista, país que ainda hoje tem uma das maiores taxas de ateus do mundo ocidental, Tomás Halík converteu-se já adulto e foi ordenado sacerdote em segredo. Perseguido pela sua fé apenas encontrou emprego a trabalhar como psiquiatra com alcoólicos e toxicodependentes enquanto ministrava clandestinamente.
Autor prolífico, tem três livros publicados em português, o mais recente dos quais “Quero que Tu Sejas” (ed. Paulinas). Nele fala sobretudo do conceito cristão de amor.
O seu mais recente livro em português é sobre o amor, mas confessa que teve alguma dificuldade em abordar o assunto. Porquê?
Os meus livros são ensaios teológicos e penso que é importante reinterpretar os grandes valores cristãos: amor, esperança e fé. Escrevi um livro sobre fé, outro sobre esperança, mas quando me perguntaram se não era tempo de escrever um sobre o amor pensei: o que é que eu posso escrever sobre o amor? Parecia demasiado piroso para mim.
O que é que eu poderia dizer, teologicamente, sobre o amor? Penso que é importante falar do amor de Deus, do amor pelos nossos inimigos. Há uma ligação entre o amor pelas pessoas e o amor por Deus que é típico do cristianismo.
A minha frase provocadora é que Deus talvez esteja menos interessado em saber se acreditamos nele do que se o amamos.
O Ocidente parece estar a passar por uma crise de fé. Há quem fique alarmado, mas não é o seu caso…
Quando alguém me diz que não acredita em Deus pergunto sempre: em que Deus é que não acredita? Tem de ter alguma imagem de Deus, algum conceito, no qual não acredita. Depois de ele explicar a sua imagem de Deus, muitas vezes sou obrigado a responder: “Ainda bem que não acreditas num Deus assim, eu também não”.
Muitos respondem que não são meros materialistas, que sabem que existe alguma coisa acima de nós. Este “algoísmo” é, no meu entender, a religião mais popular do nosso tempo.
As pessoas não estão preparadas para acreditar num conceito particular de Deus e é este conceito que está em crise. É um desafio e uma oportunidade, para reflectir mais a fundo sobre o conceito de Deus.
Utiliza a imagem da noite escura da alma.
Os místicos falam da noite escura da alma ao nível individual, mas creio que também existem noites escuras colectivas. As experiências duras do século XX, com os “gulags”, Auschwitz, o Holocausto, as duas Guerras Mundiais… Foram grandes testes e depois deles não podemos simplesmente voltar à religião dos “bons velhos tempos”.
O cristianismo está a passar por uma fase pascal e a Páscoa significa a cruz, a morte e a ressurreição. É bom que o nosso conceito de Deus [uma imagem humana de Deus] esteja a morrer, mas é também uma oportunidade para ressuscitar a nossa fé, que deve ser mais profunda. Quando leio sobre Cristo ressuscitado nos Evangelhos ele aparece diante dos seus discípulos mas eles não o reconhecem e ele legitima-se com as suas chagas. Temos de procurar as chagas de Cristo no nosso mundo.
A passagem em que Jesus aparece a Tomé é muito importante para mim. É a única parte dos Evangelhos em que Cristo é tratado por Deus. Tomé toca nas suas chagas e diz: “Meu Senhor e meu Deus”. Quando estive na Índia, no local onde, de acordo com a tradição, São Tomé foi sepultado, reflecti sobre isto e depois visitei um hospital para crianças pobres. Parecia o inferno. E então compreendi que estas são as chagas de Cristo no nosso mundo e se ignorarmos as chagas de Cristo no nosso mundo, as chagas do nosso mundo, não temos direito a dizer “meu Senhor e meu Deus”.
Acho que a grande santa padroeira do nosso tempo é madre Teresa de Calcutá. Ela servia os pobres e os doentes, mas depois de morrer muitas pessoas ficaram chocadas ao saber que ela tinha sofrido grandes dúvidas e uma noite escura da alma. Durante o dia ela estava unida aos que sofriam de doença e pobreza, mas através da noite escura estava também unida aos que sofriam espiritualmente.
Diz que não é a crença em Deus que faz um cristão, mas a crença de que Deus é amor. Há pessoas que se dizem cristãs mas que não reflectem isso? Isso é um perigo?
São, sim. No Novo Testamento lemos que até os demónios acreditavam, mas tinham medo. Penso que a crença com medo é demoníaca. A nossa crença deve estar ligada à alegria, à liberdade e à gratidão. Precisamos de corrigir esta imagem demasiado humana de Deus e descobrir o Deus que está no Evangelho. O Papa Francisco é o mestre desta reinterpretação, desta compreensão nova e mais profunda do Evangelho.
É crítico dos tradicionalistas, mas também dos progressistas…
Não me identifico nem com uns nem com outros, porque ambos partilham um erro. Estão demasiado concentrados nas coisas exteriores, nas instituições e nas fórmulas. Os tradicionalistas querem manter tudo na mesma e os progressistas pensam que a solução é mudar as instituições e as formas. Mas eu acredito que a verdadeira solução é ir mais fundo, refrescando a nossa linguagem e aprofundando a nossa espiritualidade. É uma terceira via entre o tradicionalismo e o progressismo.
Estudou muito as religiões orientais, como o budismo, que têm pontos de partida muito diferentes do cristianismo. Que tipo de diálogo é possível com elas?
Não acredito em criar uma espécie de religião universal. Mas através do diálogo podemos descobrir coisas que nos ajudam.
Por exemplo, o lugar do corpo na meditação, a ideia de que a meditação espiritual é algo que envolve toda a nossa personalidade, não apenas a mente mas também a respiração e o nosso corpo. São coisas que o cristianismo esqueceu e que podemos redescobrir através deste diálogo. Muitas pessoas nos nossos países começaram por se interessar pelas tradições orientais, mas acabaram por perceber que não é assim tão fácil ser budista em Praga ou em Lisboa e acabam por descobrir o misticismo cristão.
Ao longo dos últimos 25 anos, desde a queda do comunismo, baptizei mais de mil jovens adultos, na maioria universitários. Falei com todos eles e os seus caminhos até ao cristianismo foram frequentemente muito complexos e às vezes começaram por passar pelo budismo, o hinduísmo, o ioga… Muitos deles estão mais bem preparados para a vida espiritual. Têm uma certa disciplina de meditação, sabem que a vida espiritual exige ascetismo e que isto também os pode preparar para a vida espiritual cristã.
A nossa sociedade tem uma dificuldade em lidar com a morte?
Durante a era comunista a morte era um tabu. Porque a morte provoca questões espirituais e o materialismo comunista não tinha respostas.
Mas hoje as pessoas estão fascinadas com a morte. Ligamos a televisão à noite e vemos tanta morte, nas notícias, nos filmes… Mas não é uma morte verdadeira, é artificial. É outra forma de fugir à questão. A morte é uma pergunta, uma provocação a pensar mais aprofundadamente, mas as pessoas estão fascinadas pela morte virtual.
O nascimento e a morte são momentos muito importantes da vida. Quando os testemunhamos estamos a ver algo que nos liga à transcendência da vida.
Há uma crise das imagens tradicionais da vida depois da morte, porque as imagens do Inferno e do Céu estão ensombradas pelas experiências do século XX. Os campos de concentração, o Holocausto e as tragédias do século XX foram mais reais que a nossa imagem do inferno. Também a polaridade de atracções do nosso mundo é mais cativante, para muitos, que as imagens tradicionais do Céu. Devemos admitir que não sabemos como será a vida depois da morte, é um grande mistério e podemos viver com esse mistério.
A fé também é isso?
A fé não existe apenas para responder às nossas perguntas. Há perguntas que são demasiado boas para estragar com respostas. A fé é também a coragem para viver com o mistério, para penetrar o véu do mistério, viver com questões em aberto. Penso que estamos confrontados com um Deus que se esconde, e a nossa fé, esperança e amor são três artes, três formas de viver com este silêncio de Deus.
Os ateus interpretam este silêncio como a não-existência, a morte de Deus. Os fundamentalistas repetem fórmulas e são incapazes de ouvir a música silenciosa do Deus escondido. Há a religião emocional, com as suas “aleluias”, mas penso que uma fé mais matura deve resistir a isto, contemplar a situação e ver os sinais e a linguagem de Deus nos eventos da nossa vida. Deus está sempre a falar-nos nos eventos da nossa vida. Os sinais dos tempos são também a linguagem de Deus, mas precisamos de silêncio interior, uma fé esclarecida e capacidade de interpretação destes eventos à luz de Deus, à luz da fé, porque as respostas não estão à superfície, estão mais fundo.
Via Facebook- RR

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