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terça-feira, 20 de janeiro de 2015

NA TUA LUZ VEREMOS A LUZ

Ano Internacional da Luz: Perspetiva bíblica, religiosa e cultural

 

O presidente do Pontifício Conselho da Cultura, o cardeal italiano Gianfranco Ravasi, que estará em Lisboa nos últimos dias de janeiro, participou hoje, em Paris, na cerimónia de abertura do Ano Internacional da Luz 2015, no âmbito da UNESCO.

Apresentamos a intervenção, centrada na luz enquanto símbolo teológico partilhado pelos seguidores de diversas tradições religiosas, incluindo também uma aproximação bíblica.

 
 
Luz, arquétipo simbólico universal

 Card. Gianfranco Ravasi
 
Em todas as civilizações, a luz passa de fenómeno físico a arquétipo simbólico, dotado de um espetro infinito de radiações metafóricas, sobretudo de qualidade religiosa. A conexão primária é de natureza cosmológica: a entrada da luz assinala o "incipit" absoluto do criado no seu ser e existir. Emblemático é o próprio início da Bíblia, que continua a ser o "grande códice" da cultura ocidental: «Wayy’omer ʼelohȋm: Yehȋ ʼôr. Wayyehȋ ʼôr», «Deus disse: "Faça-se a luz!" E a luz foi feita! (Génesis 1, 3). Um sonante acontecimento divino, uma espécie de "big bang" transcendente, gera uma epifania luminosa: rompe-se, assim, o silêncio e a treva do nada para fazer florescer a criação.
Também na antiga cultura egípcia, a irradiação da luz acompanha a primeira aurora cósmica, marcada por uma grande ninfa que sai das águas primordiais, gerando o sol. Será sobretudo este astro a tornar-se o próprio coração da teologia do Egito faraónico, em particular com as divindades solares Amon e Aton. Este último deus, com Amenofis IV-Akhnaton (séc. XIV a.C.), tornar-se-á o centro de uma espécie de reforma monoteísta, cantada pelo próprio faraó num esplêndido Hino a Aton, o disco solar: tal reforma, todavia, passará como um meteoro de breve duração no céu do tradicional politeísmo solar egípcio.
De maneira similar, a arcaica teologia indiana dos Rig-Veda considerava a divindade criadora Prajapati como um som primordial que explodia numa miríade de luzes, de criaturas, de harmonia. Não por acaso, noutro movimento religioso originário daquela mesma região, o seu grande fundador assumirá o título sagrado de Buda, que significa precisamente "o Iluminado".
E, para chegarmos a épocas históricas mais próximas de nós, também o islão escolherá a luz como símbolo teológico, dado que uma inteira "sura" do Corão, a 24.ª, será intitulada "An-nûr", "a Luz". No seu interior, um versículo estará destinado a um enorme sucesso e a uma intensa exegese alegórica na tradição "sufi" (em particular com o pensador místico al-Ghazali, nos séculos XI-XII). Trata-se do versículo 35, que clama assim: «Deus é luz no céu e na terra. A sua luz é como a de uma lâmpada colocada num nicho. A lâmpada está num cristal, é como uma estrela de esplendor deslumbrante e está acesa com o óleo de uma oliveira abençoada. Luz sobre luz é Deus. Ele guia quem ama para a sua luz».
Poder-se-ia continuar durante muito tempo com esta exemplificação, passando através das múltiplas expressões culturais e religiosas do Oriente e do Ocidente que adotam como pedra angular teológica um dado que está na raiz da comum experiência existencial humana. A vida, com efeito, é um "vir à luz" (como em muitas línguas é definido o nascimento), e é um viver à luz do sol ou a ser guiado na noite pela luz da lua e das estrelas.
 
A luz como símbolo "teo-lógico"
Dados os limites da nossa análise, satisfazer-nos-emos com apenas duas observações essenciais, destinadas apenas a intuir a complexidade da elaboração simbólica construída sobre esta realidade cósmica. Por um lado, aprofundaremos a qualidade "teo-lógica" da luz, que é uma analogia para falar de Deus; por outro lado, examinaremos a dialética luz-treva no seu valor moral e espiritual.
Teremos como ponto de referência exemplificativo a Bíblia, que gerou para a cultura ocidental um "léxico" ideológico e iconográfico fundamental. Ela pode oferecer-nos um paradigma sistemático exemplar geral, dotado de uma coerência interna significativa. As Escrituras judeo-cristãs foram, além disso, uma referência cultural capital durante vários séculos, como reconhecia um testemunho independente e alternativo como o filósofo Friedrich Nietzsche: «Entre o que sentimos na leitura de Píndaro ou de Petrarca e na dos salmos bíblicos, ocorre a mesma diferença que há entre a terra estrangeira e a pátria» ("materiais preparatórios" para "Aurora").
Diferentemente de outras civilizações que, falando simplificadamente, identificam a luz (sobretudo solar) com a própria divindade, a Bíblia introduz uma distinção significativa: a luz não é Deus, mas Deus é luz. Exclui-se, por isso, um aspeto realístico panteísta, e introduz-se uma perspetiva simbólica que conserva a transcendência, mas afirmando uma presença da divindade na luz que permanece, contudo, «obra das suas mãos». Devem entender-se assim as afirmações que pontuam os escritos do Novo Testamento atribuídos ao evangelista João. Neles, declara-se: «Ho Theòs phôs estín», «Deus é luz» (1 João 1, 5). O próprio Cristo apresenta-se assim: «Egô eímì to phôs tou kósmou», «Eu sou a luz do mundo» (João 8, 12). Nesta linha insere-se aquela obra-prima literária e teológica que é o hino que abre o Evangelho de João, onde o "Lógos", o Verbo-Cristo, é apresentado como «luz verdadeira que ilumina cada homem» (1, 9).
Esta última expressão é significativa. A luz é assumida como símbolo da revelação de Deus e da sua presença na história. De um lado, Deus é transcendente, e isto expressa-se pelo facto de a luz ser exterior a nós, precede-nos, excede-nos, supera-nos. Deus, porém, está também presente e ativo na criação e na história humana, mostrando-se imanente, e isto é ilustrado pelo facto de a luz nos envolver, distingue, aquecer, invadir. Por isso também o fiel se torna luminoso: pense-se no rosto de Moisés irradiando luz depois de ter estado em diálogo com Deus no cume do Sinai (Êxodo 34, 33-35). Também o fiel justo se torna fonte de luz, uma vez que se deixa envolver pela luz divina, como afirma Jesus no seu célebre "discurso da montanha": «Vós sois a luz do mundo... Assim resplandeça a vossa luz diante dos homens» (Mateus 5, 14.16).
 
Prosseguindo nesta linha, se a tradição pitagórica imaginava que as almas dos defuntos justos se transformariam nas estrelas da Via Láctea, o livro bíblico de Daniel assume talvez esta intuição, mas liberta-a do seu realismo imanentista, transformando-a numa metáfora ético-escatológica: «Os que tiverem sido sensatos resplandecerão como a luminosidade do firmamento, e os que tiverem levado muitos aos caminhos da justiça brilharão como estrelas com um esplendor eterno» (12, 3). E no cristianismo romano dos primeiros séculos - depois de ter sido escolhida a data de 25 de dezembro para o Natal de Cristo (esse dia era a festa pagã do deus Sol, no solstício de inverno que assinalava o início do crescimento da luz, antes humilhada pela escuridão invernal) - começar-se-á a definir nas inscrições sepulcrais o que cristão lá jaz como «éliopais», «filho do Sol». A luz que irradiava Cristo-Sol era, assim, destinada a envolver também o cristão.
Na tradição cristã futura, estabelecer-se-á uma espécie de sistema solar teológico: Cristo é o sol; a Igreja é a lua, que brilha com luz refletida; os cristãos são astros, embora não dotados de luz própria mas iluminados pela suprema luz celeste. Trata-se aqui de uma visão essencialmente simbólica destinada a exaltar a revelação e a comunhão entre a transcendência divina e a realidade histórica humana, como é evidente num passo surpreendente mas coerente no último livro bíblico, o Apocalipse, onde na descrição da cidade ideal do futuro escatológico perfeito, a Jerusalém nova e celeste se proclama: «Não mais haverá noite, nem terão necessidade da luz da lâmpada, nem da luz do Sol, porque o Senhor Deus irradiará sobre eles a sua luz» (22, 5). A comunhão da humanidade com Deus será então plena e todo o símbolo desaparecerá para deixar espaço à verdade do encontro direto.
 
A dialética luz-trevas
 
É interessante notar que no texto citado se faz menção ao fim da noite e, portanto, ao ritmo circadiano [que tem a duração ou periodicidade de um dia]. Este é um lugar característico da escatologia (isto é, do fim dos tempos), como se lê no livro do profeta Zacarias, que, quando descreve o cumprimento final da história, representa-o como «um dia único, conhecido somente do Senhor, sem alternativa de dia e de noite, porque ao anoitecer brilhará a luz» (14, 7). Na existência histórica, esse ritmo quotidiano entre luz e obscuridade permanece, e torna-se também um sinal de natureza ético-metafísica. Pretendemos falar da dialética luz-trevas que surge já no texto acima citado do livro do Génesis. O ato criativo divino, expresso através da imagem da "separação", coloca ordem na "desordem" do nada: «Deus viu que a luz era boa e separou a luz das trevas. Deus chamou dia à luz, e às trevas, noite» (1, 4-5).
É significativa a definição da luz como «tôb», adjetivo hebraico que é ao mesmo tempo ético, estético e prático, e, por isso, designa algo que é bom, belo e útil. Em contraste, a treva é a negação do ser, da vida, do bem, da verdade. Por esta razão, enquanto que o zénite paradisíaco está imerso no esplendor da luz, o nadir [ponto mais baixo] infernal está envolvido na escuridão, como se lê no livro bíblico de Job, onde os infernos são descritos como «região das trevas e da escuridão, terra tenebrosa e sombria,de escuridão e confusão, onde a própria luz é sombra» (10, 21-22).
Pelo mesmo motivo, a antítese luz-treva transforma-se num paradigma moral e espiritual. É o que ocorre em muitas culturas e que tem um ápice no citado hino-prólogo do Evangelho de João, em que a luz do Verbo divino «brilha nas trevas e as trevas não a venceram» (1, 5). E mais à frente, no mesmo quarto Evangelho, lê-se: «A Luz veio ao mundo, e os homens preferiram as trevas à Luz... Quem pratica o mal odeia a Luz e não se aproxima da Luz... Mas quem pratica a verdade aproxima-se da Luz» (João 3, 19-21). Também na comunidade judaica ativa desde o séc. I a.C. em diante, descoberta em Qumran, ao longo das margens ocidentais do mar Morto, um texto descreve «a guerra dos filhos da luz contra os filhos das trevas», seguindo um módulo simbólico constante para definir o contraste entre bem e mal, entre eleitos e réprobos.
Este dualismo reflete-se igualmente na oposição anjos-demónios ou nos princípios antitéticos "yang-yin", nas divindades em luta entre elas, como, nas cosmogonias babilónias o Marduk criador e a Tiamat destruidora, ou como Ormuzd (ou Ahura Mazdah) e Ahriman da religião persa mazdeísta, ou como Deva e Ashura no mundo indiano. A mesma dialética adquire uma nova forma no horizonte místico quando se introduz o tema da «noite escura», ilustrada por um grande autor místico e poético do séc. XVI espanhol, S. João da Cruz. Neste caso, o tormento, a prova e a espera da noite do espírito é como um ventre fecundo que se torna prelúdio da geração da luz da revelação e do encontro com Deus.
Em síntese, podemos partilhar a afirmação de Ariel no "Fausto" de Goethe: «Welch Getöse bringt das Licht!», «que tumulto traz a luz!» (II, ato I, v. 4671). Esse é, realmente, um sinal glorioso e vital, é uma metáfora sagrada e transcendente, mas não é inofensiva porque gera tensões com o seu oposto, a treva, transformando-se em símbolo da luta moral e existencial. A sua irradiação, portanto, do cosmo trespassa a história, do infinito desce ao finito, e é por isso que a humanidade anseia pela luz, como no grito final que se atribui ao mesmo Goethe, «Mehr Licht!», «mais luz!»: em sentido físico, por que se fechavam os olhos na agonia, mas também em sentido existencial e espiritual de aspiração a uma epifania suprema de luz. É o que invocava o antigo poeta hebraico dos Salmos: «Em ti está a fonte da vida, e é na tua luz que vemos a luz!» (Salmo 36, 10).
 
Card. Gianfranco Ravasi
Biblista. presidente do Pontifício Conselho da Cultura
In Pontifício Conselho da Cultura"
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado em 19.01.2015

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