Vladimir Putin. A marioneta dos oligarcas que decidiu ganhar vida própria
Jornal i
Vladimir Putin é algo mais do que uma incógnita, é um líder que sabe dispor o jogo, iludir, gerir o bluff com toda a frieza, porque a sua ameaça não é vã. Obrigou o mundo a levá-lo a sério. Em 2013 foi a “Forbes” que o elegeu o homem mais poderoso do mundo. Contudo, no mesmo ano, ao tentar traçar o seu perfil, a “Foreign Policy” intitulou o artigo “O distúrbio de personalidade de Putin”. Avisava que, se a estratégia por trás da imagem que foi construída do presidente russo pretende fazer dele um durão, isto não passa de um truque, pois Putin é, afinal, bem mais frágil do que parece. É verdade que o homem que há 15 anos domina a cena política russa permanece, em certa medida, uma aparição, um fantasma.
Com a viragem do milénio, alguém que era desconhecido da maioria dos russos surgiu em cena e roubou o espectáculo. Desde então, o seu passado permanece um território nebuloso onde poucos se aventuraram. As várias biografias vêem-se obrigadas a escalpelizar questões laterais, sendo escassa a informação definitiva e confirmável. Por isso, não foram poucos os analistas que referiram o facto de Putin não ter um rosto, um carácter definido. Mais do que um camaleão, a figura que, na história (ainda que mitológica), permite um paralelismo com este líder moderno é Jano, o deus romano. Tal como o deus de duas faces – uma olhando para a frente, a outra para trás –, o presidente russo foi responsável por uma idade de ouro, e não será de desprezar o quanto também ele representa a mudança, novos começos, como “uma sentinela no limiar” entre duas épocas. A figura de Jano é associada a portas e a sua dupla face simboliza também o passado e o futuro. É o deus dos inícios, das decisões e das escolhas. Vamos deixar o paralelismo por aqui e veremos se é ou não adequado. Popular como só um punhado de grandes líderes ao longo da história, Putin é visto pela maioria dos russos como um salvador e um herói nacional, um homem que encarna o espírito do grande timoneiro que uma nação como a Rússia exige. Sóbrio, trabalhador, extremamente inteligente, alguém que saiu das sombras para ressuscitar o orgulho de um país que outros tinham saqueado e deixado à deriva. Os seus primeiros dois mandatos no Krem-lin marcaram um período de rápido crescimento económico que contou ainda com uma inesperada campanha militar da qual saiu vitorioso na Chechénia. E no fim desses oito anos, respeitou a Constituição e deixou o lugar a outro, com a influência de Moscovo no mundo restaurada e uma fatia importante da população numa situação melhor do que se encontrara. É este o retrato que tem servido ao culto de Putin, o de um homem que fez a ponte entre o caos pós-comunista e as ameaças à estabilidade nacional e uma nação moderna, aberta aos mercados, à afirmação económica individual e à possibilidade da democracia. Mas simetricamente oposto a esse rosto firme e de olhar posto no futuro, há um outro, uma outra persona, com uma frieza no olhar bem mais inquietante. A de um astucioso manipulador, impiedoso e até diabólico, que surge na dianteira de uma elite mafiosa que capturou o aparelho estatal e enriqueceu de forma sórdida, e goza de um estilo de vida inimaginável para o comum dos mortais. O sonho dos tempos de miúdo era o de vir a tornar-se um agente do KGB. Se a maioria de nós cresce para abandonar e frustrar o mundo visto da infância, Putin não só não abandonou os seus planos como foi muito além deles, tornando claro o que há de comum entre o optimismo de uma criança e a fé inabalável de um tirano. Fez carreira naquela organização cujos membros não podem nunca deixá-la para trás. E não foi só mais um espião. Aos 32 anos, dirigia o KGB. Basta este facto para que muitos analistas tenham outro cuidado com Putin, assumindo que há algo que escapa ao nosso olhar. Pode ser demasiado bom no que faz ou mau como só muito poucos. Pode até ser uma combinação que não cabe dentro do preto e branco e do arquivismo maniqueísta a que o Ocidente cede com tanta facilidade. Seja como for, este retrato é o de um homem fortemente anti-ocidental, antidemocrata, e que não perde o sono com situações de tensão e conflito, tal como não vê grande diferença entre a gestão política e o crime organizado, mantendo no seu círculo mais próximo um conjunto de personagens que não terão dificuldade em entrar no quadro de honra do inferno. Putin é, além disso, um nostálgico. Alguém que passa o olhar pelo passado e paira acima dos horrores e de todo o sofrimento, focando-se na ideia do império e de um imenso poder. Quando terminou os primeiros dois mandatos, dispensou o título e continuou a mandar.
É mais fácil falar em termos de heróis e vilões, mas talvez a imagem que ocorra seja a de um paciente, determinado e disciplinado jogador de xadrez. Que não atribui demasiado valor às peças em si, mas à sua posição no tabuleiro. Essa inteligência foi o que lhe permitiu dobrar todas as outras regras, vergar uma classe política obediente e instalar um fantoche como seu sucessor, e como um dia outros tentaram fazer com ele.A ilusão está em dirigir a atenção, e muitos analistas garantem que a sua defesa dos valores tradicionais e a sua campanha pela afirmação das liberdades pessoais não passa de uma farsa. Um truque que faz para distrair o povo enquanto os fenomenais lucros do sector energético caem nos bolsos certos. Assim, não faz mal que a democracia surja no horizonte, desde que lá fique e continue a cada passo. E de xeque em xeque, o Kremlin nem se dá a grandes esforços para esconder a sua cleptocracia. Uma máfia com armas nucleares e que controla as estações televisivas onde os desenhos animados para as crianças dão lugar a programas informativos em que se diz aos russos que não têm nada com que se preocupar. São dois retratos muito diferentes de um só rosto. O que é inegável é que, quando no Verão de 1999, um exausto Boris Ieltsin apresentou Putin ao mundo, anunciando-o como a sua escolha para primeiro-ministro, poucos pressentiram o peso com que aquela figura viria a impor-se na história. Não eram só os seus 46 anos, que pareciam mais verdes do que afinal se revelaram, mas sobretudo o estado em que o país lhe caiu no colo. Um país pobre, um governo sem ordem nem orientação e uma população à beira de um ataque de nervos depois de nem o compromisso com os mercados livres e a democracia terem dado alguma hipótese de se sonhar na Rússia como se sonha na América. O crime e a corrupção eram a farinha do pão russo, com um círculo de oligarcas multimilionários a controlarem fracções enormes dos recursos e capitais. E é claro que não ajudou Putin ser introduzido no palco por um presidente que não se sabia para que lado podia acordar virado, o que dava a impressão de que Putin mais não era que um capacho. Nesse Verão perdido, quantos terão suspeitado que Putin não teria exactamente o mesmo fim que os seus antecessores, todos demitidos. Mas em 2000 houve eleições, e os homens que era preciso pôr de acordo concluíram que Putin servia para continuar a segurar as pontas. O restrito grupo de milionários que aproveitaram a desgovernação para tomar conta das principais empresas russas ao preço da chuva, elevando as suas fortunas a valores só possíveis de descrever com aquelas palavras que inventava a Mary Poppins, começou a reunir-se para decidir como iam ser as coisas em termos de futuro – o do país e, especialmente, o deles. Na altura, eram sete os mais poderosos e os que tomavam chá enquanto as grandes decisões eram tomadas. Boris Berezovsky ficava à cabeceira, no lugar do padrinho. Tinha-se infiltrado no Kremlin, cercando Yeltsin e conquistando a sua confiança, tendo primeiro conseguido insinuar-se junto da sua filha. A dado ponto, a sua influência terá sido de tal ordem que se suspeitava que tinha sido ele quem foi buscar Putin a Sampetersburgo. Chamado para representar os interesses da “Família” ligada a Ieltsin, Putin só teve de esperar que o seu principal oponente, Yury Luzhkov, o poderoso presidente da câmara de Moscovo (“Presidente da Cidade”), fosse fragilizado politicamente por uma campanha nos meios de comunicação controlados pelos oligarcas. Vladimir Gusinsky, o homem que dominava os media russos, foi o grande responsável pela estratégia que abriu o caminho a Putin. As coisas iam lindamente, mas o padrinho cometeu um erro ao avaliar Putin e a sua lealdade. Mal se viu no poder, Putin mostrou a sua herança dos tempos do KGB e Berezovsky tornou-se o alvo a abater – ele e Gusinsky, pois Putin apercebeu--se de que as estações televisivas eram o palco de todo o teatro político. Uma vez que as operações militares na Chechénia estavam a beliscar a sua popularidade, declarou guerra a Gusinsky, que mantinha uma cobertura imparcial desses eventos. O oligarca não cedeu, foi preso, viu a vida andar para trás e acabou por preferir o exílio. Gusinsky caiu primeiro e Berezovsky percebeu a ameaça que vinha agora do Kremlin. Quis ir à luta, serviu-se também dos seus próprios órgãos de comunicação social, e não se pode dizer que não tenha dado alguma luta. Aliás, dedicou todos os dias depois, quase todos já no exílio, a tentar corrigir o seu erro ao confiar em Putin. Morreu há dois anos e as próprias circunstâncias da sua morte levantaram suspeitas. O mais certo é que, enfrentando uma profunda depressão e pressionado por enormes dívidas, se tenha suicidado. Entre os oligarcas que se recusaram a perceber que as coisas não voltariam a ser como dantes e que, se queriam continuar a dançar, teriam de o fazer seguindo a música escolhida por Putin, estava ainda o mais rico de todos eles, Mikhail Khodorkovski. O principal accionista da Yukos, maior empresa petrolífera russa e uma das maiores do mundo, quis trilhar o seu próprio caminho na política e especula-se ainda hoje que continua a alimentar a esperança de vir a tornar-se presidente. O que não lhe faltava era dinheiro, e desafiou Putin no seu jogo, financiando o principal partido da oposição, o liberal Yabloko, e também o Partido Comunista, o que significava apostar em dois cavalos completamente diferentes. Se os outros dois oligarcas que fizeram frente a Putin foram perseguidos e postos a correr, Khodorkovski veio a servir de exemplo para que mais nenhum dos poderosos oligarcas que se aproveitaram da ingenuidade de Yeltsin cometessem o erro de desafiá-lo.
Em meses, Putin pôs em marcha um plano afinando a máquina do Kremlin, que fez cair uma torrencial chuva de acusações criminais contra Khodorkovski, que passou de um dos homens mais poderosos do país ao rosto da ganância e podridão que teria iludido a população, apropriando-se das grandes empresas no período de liberalização económica pós-soviética.
Foi enfiado na prisão e ali passou dez anos como num longo castigo até que, em 2013, e numa decisão que causou alguma surpresa, Putin lhe concedeu um indulto. Porque, independentemente do que o mundo pense dele, Vladimir Putin sabe o que é o poder. Segundo a famosa cena do filme de Spielberg sobre Schindler, o poder não se confunde com a justiça, é antes a arbitrariedade de um homem que comanda os destinos dos homens à sua volta.
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