Padre, tenho fome
Uma voz sumida, triste, triste daquela tristeza que amachuca a alma, que aperta o coração e que dói cá dentro, neste “dentro” do mais íntimo que custa a definir mas que se sente, sobretudo quando dói, quando dói fundo, neste fundo mais fundo que sentimos, quando entra a dor e o desconforto, aquele desconforto que nos tira de nós e nos faz, pelo menos... abrir os olhos... foi esta voz triste e sumida que, de repente, me acordou...
O cenário era o de África, num campo seco sem limites, debaixo daquele sol que dói, que esmaga, acompanhado daquela humidade que amassa e que magoa no torpor do suor que tudo empapa e cobre cada milímetro de pele.
Padre, tenho fome! Há três dias que não como!
Os pais tinham morrido de “dores de cabeça”!... o flagelo da SIDA que alastra silenciosa ao ritmo da avalanche que tudo engole. A irmã, em casa de quem vivera, – sistemática e metodicamente agredida pelo “macho” omnipotente –, não podia alimentar mais uma boca a juntar às 5 que cada dia reclamavam o prato de comida que não estava.
Padre, tenho fome! Não tenho para onde ir!
Os meus olhos contemplavam o campo aberto na secura do deserto. Ali, no deserto, de repente, quinze anos de sofrimento gritavam salvação. O meu peito, estava apertado naquele abraço que jamais esquecerei, envolvido pelos braços magros daquele corpo franzino e frágil que se agarrava a mim como o náufrago que de repente encontra a redenção.
Nos olhos, já não vivia só a imagem do campo seco. A secura dera lugar às lágrimas.
Era mais um... mais um dos muitos que eu vira, dos muitos que vejo e encontro, nos encontros e desencontros para onde a vida me atira... Este era diferente, este tinha-o abraçado a mim!
De repente deixou de ser mais um... tinha nome, tinha fome, tinha medo; fome de pão e fome de colo; medo do mundo e da vida; medo que mata!
Deu-me um beijo, dei-lhe um beijo! Na secura da paisagem que nos envolvia, “acontecemo-nos” e ficámos ali, abraçados no deserto regado de lágrimas de esperança e de tristeza... no deserto! No deserto aumentado pelo incómodo estampado no rosto do “religioso” que me acompanhava, anafado, empanturrado, e abafado pelo calor e pelo colarinho eclesiástico que estrangulava o pescoço sem mais espaço para alargar... que incómodo, que maçada... “rais parta a canalha”... Não há pachorra para aturar estes “gajos de religião”!
Padre, tenho fome! Leve-me daqui!
Acabara de gerar mais um filho na distância.
Continuamos abraçados e sorrimos!
Já lá vão dois anos... a fisionomia esbateu-se..., a memória não, o necessário foi chegando, as Irmãs Capuchinhas têm sido a minha via de contacto... a fome terminou, as Irmãs deram o colo que faltava... agora é tempo de passar para a escola agrícola de nível superior... há por aí alguém de fé sem “religião” que queira ajudar? Muito obrigado.
Não podemos resolver os problemas do mundo, mas podemos sempre resolver os problemas do mundo de alguém.
Bem hajam!
Fr. Fernando Ventura, OfmCap fernandogreat@gmail.com
Publicado em 18.03.2015
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